Em 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra. A data foi instituída no Brasil na década de 70 e representa um marco na luta por mais representatividade e reconhecimento das contribuições afro-brasileiras à cultura e à identidade do país. Porém, passados mais de 50 anos, os desafios por mais espaços na sociedade continuam, sobretudo, em algumas áreas consideradas majoritariamente brancas, como é o caso da Medicina.
O portal Melhores Escolas Médicas ouviu representantes de entidades que lutam contra a desigualdade racial e profissionais da medicina a respeito da presença de negros na formação médica, bem como da necessidade de reafirmação dessa pauta. Para a cardiologista Úrsula Burgos, a jornada médica representa um desafio multifacetado que vai além do ingresso ao ensino superior. Segundo ela, além do desafio que é comum a todos os estudantes, de uma graduação longa e complexa como é a de Medicina, o fato de ser uma exceção pesa.
“A quase total ausência de representatividade te mergulha muitas vezes na ‘síndrome do impostor’, e você se pergunta: ‘o que estou fazendo aqui?’. Tudo isso exige mais, tanto no âmbito psicológico quanto no técnico. É o grande desafio começar em desvantagem. Não ver com frequência pessoas como você, ao tempo que te impulsiona e dá uma gana de fazer bem feito, te estampa na cara, sem subterfúgios, que fatores sociais como o racismo também são determinantes de saúde”, pontua Úrsula.
Nesse contexto, a disparidade entre o número de alunos brancos e pretos matriculados no ensino médico no país foi, inclusive, objeto de levantamento da Demografia Médica 2023, realizada pela Associação Médica Brasileira (AMB) em parceria com a Faculdade de Medicina da USP, a partir de dados do Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC).
Segundo a Demografia, entre os anos de 2010 e 2019, houve um aumento no quantitativo de alunos ingressantes em cursos de medicina que se declararam pretos ou pardos. O salto foi de 1.483 para 9.326 estudantes. A pesquisa concluiu que esse aumento ocorreu em função da maior declaração de raça/cor e do maior número de vagas totais disponíveis, com oscilações no período avaliado. O crescimento mínimo, de 25,1%, foi registrado em 2012. O máximo, 29,3%, em 2015.
Entretanto, ao considerar a formação no ensino superior em Medicina, a desigualdade ficou ainda mais evidente. Em 2010, o Inep identificou que apenas 2,66% dos concluintes eram pardos ou pretos. A diferença entre a escolarização média da população negra e branca tem relação direta com a desigualdade entre os dois grupos. Ainda como parte desse estudo, em 2021, na residência médica 70,1% dos médicos residentes se identificaram como brancos e 27,5%, negros (dos quais 3% se declararam pretos e 24,5% pardos).
Mesmo com a Lei de Cotas nº 12.711/2012, que institui a inserção de pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI), a representatividade desses grupos evolui num ritmo lento, reforçando a necessidade contínua de políticas afirmativas para ampliar o acesso desses alunos na graduação em Medicina. O Censo da Educação Superior de 2023 revelou estagnação preocupante no percentual de estudantes PPI em programas como Fies e Prouni, como abordou texto recente publicado no Melhores Escolas Médicas.
A importância da Lei de Cotas
Depoimentos como o da médica Úrsula Burgos denotam a ausência de médicos negros nos bancos universitários, bem como a importância da Lei de Cotas enquanto política de inclusão. “Ainda estamos bem longe dessa equidade racial, mas de fato o acesso do negro aos cursos universitários, e isso inclui o de Medicina, quadruplicou após a Lei de Cotas, em que pese ser uma lei bastante polêmica e que não agrada a todos. Vem sendo de certo modo uma revolução silenciosa. A questão é que quadruplicar um número que era muito baixo nos coloca num ponto em que temos ainda muito chão pela frente”, observa a cardiologista.
Além da graduação, a minoria negra pode ser observada também na educação continuada, como a residência médica. No mês passado, a discussão sobre a utilização de cotas em processos seletivos para cursos de residência ganhou mais um capítulo: o embate jurídico entre a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), responsável pela organização do edital do Exame Nacional de Residência (Enare) 2024/2025, e o Conselho Federal de Medicina (CFM), que é contrário à reserva de vagas.
A militante do Movimento Negro Unificado (MNU) e diretora executiva da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE/CUT), Iêda Leal, ratifica a necessidade de políticas afirmativas que garantam a reparação histórica para a inserção de negros e outros grupos minoritários na área da saúde.
“O conhecimento da história do povo negro no Brasil e no mundo é matéria fundamental para aqueles que querem efetivamente participar de conselhos sérios neste país. Cotas nos serviços públicos, para a entrada nas universidades e nos complementos da aquisição de conhecimentos devem ser encaradas com naturalidade e inteligência. Importa como entramos no ensino superior sim! Importa como permanecemos no ensino superior e na pós-graduação, e isso é responsabilidade do Estado brasileiro. Reparação deve ser projeto pra superação do racismo”, comenta Iêda.
“A escola brasileira tem compromisso com o conjunto de reparações para a verdadeira igualdade. Defender a exclusão de estudantes negros e negras do processo legítimo de cotas pra residência médica é continuar prestigiando o crime contra a maioria da população brasileira. As cotas são uma política séria para reconhecer que os negros foram vítimas no período da escravização e até hoje há reflexos cruéis nas vidas dessa população”, conclui a militante do MNU.
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