A questão da violência contra a mulher tem agora uma campanha específica, anual e permanente de conscientização em todo o país. Trata-se do Agosto Lilás, uma iniciativa que dedica o mês de agosto à proteção da mulher e ao combate à violência doméstica. No último dia 10 de agosto, o Senado Federal aprovou um projeto de lei que determina a promoção e realização, tanto em nível federal quanto pelos Estados e Municípios, de ações de conscientização e esclarecimento sobre as diferentes formas de violência contra a mulher. O projeto já foi aprovado também na Câmara dos Deputados e ainda aguarda a sanção da Presidência da República.
A aprovação do Agosto Lilás, que surgiu em 2018 como forma de comemorar o aniversário de criação da Lei Maria da Penha, permite que as pessoas vejam e discutam sobre os casos de violência contra a mulher, partindo de estatísticas constantes e assustadoras. De acordo com a edição 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada no mês passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil registrou, em 2021, um total de 230.861 agressões por violência doméstica, 597.623 queixas de ameaças e 370.209 medidas protetivas concedidas.
Outras pesquisas dão mais peso à urgência e à insistência de que o tema seja pautado no debate público. De acordo com estimativas da plataforma Violência contra as mulheres em dados, da Agência Patrícia Galvão, 26 mulheres são vítimas de agressão física por hora no Brasil, enquanto uma mulher ou menina é estuprada a cada 10 minutos. E a média dos feminicídios chega a três crimes por dia. O mesmo anuário aponta que o Brasil teve 1.341 feminicídios (assassinatos de mulheres por conta da condição de gênero) no ano passado.
Esse último dado ajuda a posicionar o país no 5ª lugar dentre aqueles que mais matam mulheres e de acordo com a pesquisa Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher 2021, realizada pelo Instituto DataSenado com o Observatório da Mulher contra a Violência. Nesta pesquisa, quase 70% das participantes disseram que conheciam uma ou mais mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, enquanto 27% declaram já ter sofrido algum tipo de agressão por um homem.
Mudança de conceitos
A própria lei, inspirada no caso da farmacêutica cearense Maria da Penha Fernandes (sobrevivente de duas tentativas de homicídio cometidas em 1983), instituiu iniciativas como as medidas protetivas de urgência concedidas pela Justiça, através das quais o agressor é proibido de se aproximar da vítima e esta, por sua vez, passa a ser assistida por essa rede de apoio, que articula serviços da polícia, do Judiciário, da assistência social e da saúde pública.
Para a professora Agtta Vasconcelos, do curso de Direito da Faculdade São Luís de França (FSLF), a Lei Maria da Penha foi um catalisador para o processo de reflexão da sociedade brasileira sobre o reconhecimento e afirmação das mulheres. “Foi preciso que um mecanismo de combate à violência de gênero fosse editado para que o tema do papel da mulher na sociedade recebesse mais atenção. O Brasil é um país maravilhoso, mas é de uma maneira geral muito muito violento e se a mulher continuasse em um lugar de fragilidade e desprotegida (sem as delegacias especiais que temos para atendimento à mulher, sem os Juizados de Violência Doméstica, sem as casas abrigo) teríamos um cenário pior. Estamos avançando”, avaliou ela.
Para além dos dados, o Agosto Lilás desperta a importância de se discutir sobre esse tema como forma de conscientizar a população e encorajar as mulheres vítimas, inclusive questionando “verdades” e mudando conceitos sobre o que é ser mulher e qual o seu lugar na sociedade. De acordo com a psicóloga e professora Marcela Teti, do curso de Psicologia da FSLF, a mulher é constantemente colocada como coadjuvante e tratada de forma pejorativa em sociedades machistas e patriarcais, como a ocidental moderna.
“De um lado, ela é colocada como a ama do lar, recatada e obediente, responsável pelo cuidado do ambiente doméstico e do desenvolvimento dos filhos. De outro, ela é posta como a selvagem natural, lasciva, objeto de satisfação de desejos. Nos dois casos, observamos a mulher como condição de objeto. Seja como burguesa ou naturalizada, estando à margem da sociedade, a mulher não é representada como partícipe da coletividade a que pertence. Esta forma de simbolizar o feminino apresenta a mulher como objeto, quiçá “presente da criação”, para fortalecimento e desenvolvimento dos homens”, ressaltou.
Ainda segundo Marcela, a campanha do Agosto Lilás vem num momento oportuno, mostrando a todos que estas formas de entender o feminino na sociedade produzem violência. “É esta ideia de que a mulher é propriedade de um homem que coloca para eles o direito de agredir fisicamente, verbalmente, sexualmente, patrimonialmente ou o direito de matá-las. Ela também impõe às mulheres que elas são inferiores, não tão inteligentes. A analogia de que toda mulher é uma flor só representa o papel de enfeite que ela exerce em muitas famílias”, esclarece.
A própria mudança nos conceitos sobre o conceito da mulher na sociedade influenciou na evolução da forma como ela era tratada na própria legislação brasileira, que em séculos passados, admitia a figura jurídica da “legítima defesa da honra do homem” para “justificar” os feminicídios e crimes do tipo. “Por muito tempo a violência contra a mulher não era nem reconhecida como violência: já vivemos momentos em que a mulher não podia votar, em que a mulher não podia adquirir bens sozinha”, lembra Agtta.
A professora assinala que resquícios da cultura patriarcal ainda persistem nas várias camadas da sociedade, e isso representa um desafio para que a Lei Maria da Penha tenha uma plena aderência. “A legislação não precisa só ser um mecanismo, mas seus aplicadores precisam fazer dela um instrumento de conscientização, de mudança de postura da sociedade. Chegará o tempo em que não vai ser preciso usar a Lei Maria da Penha para impor temor aos agressores”, conclui a professora, referindo-se ao estágio de plena conscientização da sociedade para o fato de que homens e mulheres merecem o mesmo respeito.