Meu romance Elefantes no céu de Piedade (Editora Patuá) é talvez resultado da constatação de que a maioria dos relatos publicados em livro sobre a ditadura implantada em 1964 privilegiou um olhar da classe média; mais, de uma classe média intelectualizada e mais afinada com a oposição aos militares.
Não conheço, claro, toda a produção literária referente ao período, mas arrisco dizer que esses livros, de ficção ou não-ficção, tendem a apresentar/justificar dúvidas e comportamentos relacionados à busca da melhor maneira de se enfrentar o arbítrio. No limite, uma escolha entre a adesão a um projeto de guerrilha ou a opção por uma resistência pacífica. Muitos traduzem na perspectiva individual o dilema que fez rachar a esquerda nos anos 1960.
São livros que têm como protagonistas jornalistas céticos ou engajados, líderes estudantis, militantes veteranos, políticos desiludidos ou comprometidos com mudanças sociais; homens e mulheres moradores da zona sul do Rio ou de áreas nobres de São Paulo, que frequentavam escolas ou faculdades particulares de elite ou instituições públicas de referência, como colégios de aplicação. Quase todos circulavam em ambientes que não correspondiam ao universo que eu havia vivenciado na minha infância e adolescência.
Em Piedade, subúrbio carioca onde eu morava, pouco se falava de política — o assunto, pelo menos, não entrava nas conversas de meus pais, tios e de seus amigos. O medo da repressão e a censura à imprensa colaboravam para o silêncio, mas havia também outras explicações, temas ainda hoje incômodos, como uma determinada aprovação aos governos militares.
Eram tempos de milagre brasileiro, de crescimento econômico, de boom da Bolsa de Valores, quando foi registrado o aumento do poder aquisitivo de parte considerável da população. Havia também um sentimento de ordem e de organização, algo que contrastava com a agitação de anos anteriores.
O general Emílio Garrastazu Médici era aplaudido quando ia ao Maracanã com radinho de pilha colado à orelha
Presidente no período mais duro da ditadura, o general Emílio Garrastazu Médici era aplaudido quando ia ao Maracanã com radinho de pilha colado à orelha, cidadãos expunham em seus carros adesivos como o que pregava amar ou deixar o Brasil. Notícias relativas à atuação de grupos envolvidos com a tentativa de luta armada — assaltos a banco, sequestros de diplomatas — geravam insegurança e apreensão, pelo menos no meu mundo.
Não se pode generalizar, é mais do que razoável supor que em Piedade e em tantos outros bairros periféricos havia inconformismo e revolta com a ditadura. Mas é impossível negar que, em muitos setores, havia uma avaliação positiva do regime — ecos dessa aprovação chegam à atualidade, levam multidões às ruas, fomentam gritos por implantação de uma nova ditadura, tiveram influência decisiva na eleição de 2018. Construído com base na escravidão, o país naturalizou a violência ao longo de sua história; até hoje boa parte da população aceita e justifica a tortura.
A conciliação que viabilizou o projeto de entrega do poder aos civis serviu também para impedir uma maior discussão sobre o impacto da ditadura no Brasil. A tentativa de negação da história tem consequências trágicas, impede a correta e necessária análise de crimes, erros e responsabilidades, permite a disseminação de versões que minimizam o horror praticado naquele período.
A ficção é fundamental para que possamos ao menos tatear o que não se revela, o que se esconde
Até por ser jornalista, respeito e me submeto aos fatos. Mas sei também que a objetividade jornalística não dá conta de tudo, muitas vezes não chega ao que não é dito, ao que não é revelado, que não consta de documentos. A ficção é fundamental para que possamos ao menos tatear o que não se revela, o que se esconde.
Elefantes no céu de Piedade nasce, portanto, do desejo de narrar uma história que ainda não tivesse sido contada, a de uma família suburbana, conservadora e simpática ao regime que, em determinado momento, se vê às voltas com contradições relacionadas ao seu apoio à ditadura.
Trata de uma dor que, como no samba de Luís Reis e Haroldo Barbosa, não sai nos jornais. É uma ficção, ainda que ancorada em uma realidade que vivenciei, do jeito que dela me recordo, da maneira que poderia ter acontecido se aqueles personagens fossem reais.
Histórias privadas não são dissociadas de outras, mais gerais, que envolvem a sociedade como um todo. Essa interação gera conflitos importantes, capazes de possibilitar narrativas aqui e ali incômodas, mas que podem acrescentar novos elementos à história de cada um de nós. Elefantes, voadores ou não, são grandes e pesados demais para que sejam ignorados.
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Por Fernando Molica, jornalista. Analista de política da CNN Brasil e autor de, entre outros livros, ‘Elefantes no céu de Piedade’. Artigo publicado originalmente na seção ‘De Próprio Punho’, no site da comunicadora Lu Lacerda.
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