Um senhor de meia idade adentra uma feira literária. Avista uma prateleira repleta de quadrinhos de super-heróis. Escolhe uma edição aleatória e começa a folhear. Pelo meio das páginas, se depara com uma ilustração que lhe prende a atenção. Um beijo. Aperta os olhos sobre a imagem. Está atento. Há algo estranho no papel. Um beijo. Dois homens. O que fazer? O que sentir? Dois homens. Um beijo. Curiosidade, medo, ódio?
Imagine o que se passa na individualidade de um prefeito cujo filtro interior de discernimento, ao processar inúmeros acontecimentos de uma metrópole sob seu governo, decide investir energia no combate a um livro em quadrinhos.
Milhões de pessoas compartilham o espaço urbano sob sua administração. Ruas, calçadas e sinais de trânsito. Escolas, postos de saúde, feiras livres. Todos os lugares públicos por onde vivemos os nossos sonhos, pesadelos e frustrações. Há vidas, aos milhões, todos os dias – intactas, perdidas ou transformadas. Um ambiente complexo, com tantos encontros quanto conflitos. Estamos falando da capital do estado com o maior número proporcional de crianças e adolescentes trabalhando enquanto deviam estudar. São 70 mil crianças e adolescentes nessa condição. Elas precisam ser protegidas. Mas há, também, aquele beijo. Não propriamente um beijo, você sabe. Mas a ilustração de um beijo. Só Crivela pode dimensionar a aflição e o grau de obsessão que produz essa prioridade. O que explica tanto problema em conviver com a diferença? É difícil especular razões. As consequências da sua postura, por outro lado, afligem a todos os amigos da sociedade aberta.
Guarda municipal mobilizada, operação invade a feira. Todos os quadrinhos devem ser inspecionados. Rápido. Não há tempo. Não importa que seja um evento privado ou que os livros sejam privados. O que são direitos de propriedade? Uma pergunta que nos leva ao encontro entre as instituições jurídicas que fundamentam a economia de mercado e os preceitos de tolerância essenciais da democracia moderna. A interseção expressa com contundência a indivisibilidade da liberdade, impossível de ser fragmentada entre economia e costumes.
A conformação de uma sociedade é resultado dos indivíduos que a compõem. Na metade do século XX, o filósofo austríaco Karl Popper já relacionava o grau de abertura de uma sociedade à postura intelectual adotada por seus cidadãos. Quanto mais tribalismo, mais fechamento. Quanto mais racionalidade crítica, mais abertura.
Nesse sentido, um dos melhores indicadores para nos ajudar a pensar o grau de abertura da sociedade é, sem dúvidas, a liberdade de expressão – uma premissa básica para o exercício da racionalidade crítica. Como nos relacionamos com a expressão daquilo que não gostamos, desprezamos ou que simplesmente diverge de nós mesmos?
É difícil mensurar objetivamente a condição da liberdade de expressão no Brasil. Esse é um assunto que possui uma dimensão profundamente humana – da qual voltaremos a tratar. Mas existem algumas tentativas internacionais.
A respeitada ONG Repórteres Sem Fronteiras analisa a liberdade de imprensa pelo mundo. Estamos na metade menos livre do planeta, posição nº 105 entre 180 países, três posições abaixo em relação a 2018.
Um dos principais fatores para esse resultado é o excesso de decisões judiciais contrárias à liberdade de expressão. O fato é que, para nossa Justiça, diversas causas são mais relevantes que a liberdade de expressão. Longe de representar uma atitude isolada, o episódio envolvendo Marcelo Crivella e o gibi da Marvel trouxe luz a uma postura comum entre magistrados. Um dos juízes que analisou o caso evocou o Estatuto da Criança e do Adolescente para justificar a censura. Poderia ser a honra de uma autoridade, a ordem social, os bons costumes ou alguma outra causa considerada politicamente correta. Na maioria das vezes, infelizmente, a censura judicial não recebe tanta atenção e passa sem maiores reações da sociedade.
Há pelo menos mais duas publicações internacionais importantes sobre esse assunto. O último relatório anual da Freedom House destacou que o país registrou 150 ataques a jornalistas, incluindo 4 mortes, somente no ano passado. Já a ONG Artigo19 – cujo nome faz referência ao trecho dedicado à liberdade de expressão na Declaração Universal de Direitos Humanos – busca mensurar esse direito de forma mais ampla, mapeando a situação de cada país a partir de 5 eixos: Imprensa, Transparência, Redes Sociais, Espaço Cívico e Instituições de Proteção. Nessa classificação, o Brasil é considerado um país de alto risco para o exercício da liberdade de expressão.
Outro indicador que também demonstra nossa dificuldade em lidar com a livre expressão é o número de pedidos de retirada de conteúdo do Google. Nesse quesito somos superados apenas pela Rússia, país de forte tradição autoritária e que certamente não podemos usar como modelo nesse quesito.
A construção de uma sociedade aberta demanda o cultivo da tolerância e do respeito à diversidade. Essas características sociais só se concretizam através de posturas individuais. Em outras palavras, não é possível haver sociedade aberta se os indivíduos da sociedade praticarem, de forma majoritária, uma postura fechada.
Como traduzir isso na prática cotidiana? Respondendo a uma pergunta muito simples: até que ponto, diante das interpretações sobre a realidade a sua volta, as pessoas assumem a possibilidade de estarem erradas? Até que ponto estão dispostas a questionar suas impressões e visões de mundo, em busca de uma compreensão mais próxima da realidade? Até onde o contato com novos dados e realidades pode mudar o seu olhar sobre alguma coisa?
Para estar seguro de sua própria visão de mundo a ponto de propor o cerceamento da circulação de uma opinião diversa é preciso cruzar a linha da falibilidade humana, descartando a possibilidade, mesmo que remota, de estar errado. Em resumo, é preciso supor a si mesmo como dono da verdade.
O problema é que a realidade é muito mais complexa do que o autoengano confortável de quem se apega a tantas certezas. A humanidade é imperfeita pela própria natureza – e partir dessa premissa nos permite enxergar, com muito mais clareza, os nossos próprios erros. Aliás, como poderíamos corrigi-los sem, antes, percebê-los? A falibilidade é premissa para o aperfeiçoamento. Uma postura aberta incorpora essa disposição para dialogar e melhorar a si mesmo através do contato com o outro – o espelho fundamental que, na vida em sociedade, nos permite pensar sobre nós mesmos. Nas palavras de Adam Smith:
“Se fosse possível que uma criatura vivesse em algum lugar solitário até alcançar a idade madura, sem qualquer comunicação com sua espécie, não poderia pensar em seu próprio caráter, a conveniência ou demérito de seus próprios sentimentos e conduta, a beleza ou deformidade de seu próprio espírito, mais do que na beleza ou deformidade de seu próprio rosto. (…) Tragam-no para a sociedade, e será imediatamente provido do espelho de que antes carecia”.
Confesso um certo constrangimento pelas condições que nos obrigam a recuperar, com impressionante atualidade, reflexões que participaram da fundação da modernidade. Como John Stuart Mill escreveu há 160 anos, não existe a possibilidade de uma sociedade aberta sem que haja a livre circulação de ideias e expressões – e essa condição é melhor para todos.
Os adeptos de uma ideia ruim não irão abandoná-la se ela for proibida – precisam ser convencidos do contrário. Ao censurar uma ideia, no entanto, perdemos a possibilidade de refutá-la.
O próprio censor, mesmo supondo que ele eventualmente já possuísse uma visão objetivamente mais correta do que aquela que ele busca censurar, perde a oportunidade de lidar com o desenvolvimento que a sua própria ideia teria se fosse submetida à necessidade de contrapor a ideia que sai de circulação com a censura. Por isso, além da óbvia violência que a censura implica sobre os censurados, ela ainda piora a vida de todos – impõe miséria até mesmo ao censor.
Não podemos esquecer, é claro, que também há o censor cínico. Ele não tem a ingenuidade de se achar dono da verdade, mas deseja ser dono do poder. Para isso, explora o sentimento alheio e joga uma tribo social contra a outra, elegendo inimigos públicos e estimulando preconceitos – como a homofobia. Nesses casos, a miséria moral subordina o próprio desenvolvimento individual à busca pelo poder. O censor escolhe não ser mais um fim em si mesmo. Movido pelo vício no exercício da força, transforma-se em um meio para a sua própria cobiça. O que sentir? O que fazer?
Cada ideia censurada reduz as possibilidades de desenvolvimento para toda a sociedade. Cada expressão cerceada afirma uma convicção parcial ao custo do apagamento de uma divergência, agredindo a igualdade de condição humana que nos define como indivíduos. Se a humanidade é imperfeita e se ideias são capazes de iluminar os nossos erros, cada ato de censura é um ataque contra o próprio desenvolvimento humano. A livre circulação de ideias e expressões é o fundamento da civilização e a fagulha fundamental que gera todas as formas de liberdade.
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Por Mano Ferreira. Jornalista e diretor de comunicação.
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