A vertigem contagiosa da democracia

“Ao assistir Democracia em Vertigem, chega-se à conclusão de que não há inocentes, nem vítimas num mecanismo que usa o coletivo para promover o favorecimento individual, seja por meio de cargos”. Portal Comunique-se publica mais um artigo da jornalista Carla Fiamini

Democracia em Vertigem não joga luzes, tão somente, na história contemporânea da Política brasileira. O documentário recentemente lançado pela Netflix revisita as oportunidades legitimamente republicanas concedidas a homens e mulheres – sejam os de esquerda ou os de direita, magistrados e empreiteiros – e que se transformaram, nos últimos tempos, em meio a um habitat fértil de vaidade e ambição, num oportunismo totalmente divorciado dos reais valores do Estado de Direito.

Com duas horas de duração, o filme retraça escândalos, com direito a visível clima de fla-flu. Saem poderosos, para outros tão influentes quanto ocuparem espaços que são disputados não apenas nos turnos eleitorais. E, enquanto mandatos vão e vêm numa Nação flagelada e com indiscutível tradição ao recomeço, parte da Imprensa adaptável às estações permanece, assim como acontece com as mais tradicionais construtoras (e fornecedoras) do País – financiadoras, direta ou indiretamente, de tudo o que existe e de tudo o que já existiu, incluindo as benesses e os prejuízos catalogados até então em nossa República!

Petra Costa, o nome por trás de Democracia em Vertigem, chega a flertar com O Mecanismo – série que também faz parte do acervo da provedora streaming por assinatura – ao denunciar a presença de um sistema que ri da cara do perigo – motivado, quem sabe, por uma imunidade tão antiga quanto à Constituição. A novidade, no entanto, recai na análise mais holística que a cineasta promove face a um aparelhamento que não tem partido, nem preferência ideológica; que não tem vergonha na cara; que não tem limite, e que vai até o fim, principalmente para justificar os meios pouco republicanos que adota para satisfazer vontades e necessidades.

“Com duas horas de duração, o filme retraça escândalos, com direito a visível clima de fla-flu. Saem poderosos, para outros tão influentes quanto ocuparem espaços que são disputados não apenas nos turnos eleitorais”

Ou seja, pouco ou nada vale o quanto, nós, brasileiros, vamos às ruas e às redes, às rodas e às urnas ávidos por uma mudança que pode cair por terra ao vazamento do próximo “grampo” ou mensagem. Nos resta, nestas situações, o covarde patrocínio à criminalização do opositor, na tentativa de aliviarmos os erros dos heróis que nos convém.

Por outro lado, ao assistir Democracia em Vertigem, chega-se à conclusão de que não há inocentes, nem vítimas num mecanismo que usa o coletivo para promover o favorecimento individual, seja por meio de cargos, fama, malas de dinheiro, penduricalhos no holerite, ou foro especial por prerrogativa de função. Não menos importante: não há santos nesta trama. Só que a quantidade de demônios em vigília assusta! Aliás, a política, segundo o documentário, é apenas uma das peças de algo engenhosamente maior – um patamar quase que anônimo e destinado a cartas marcadas.

Ao que parece, a política é tão usada pelo sistema quanto o cidadão (defendendo a intervenção militar ou gritando Lula Livre) é usado pela política, que, acostumada a flertar com as capas de revistas, agora – ou não de hoje – lança mão de um duplo twist carpado jurídico para revestir sua narrativa de “ordem e progresso”. Só que a Nação e o brasileiro são os que mais perdem frente a essa concertação de interesses das instituições e do mercado. E assim será, enquanto vivermos num País onde a investigação de alguns é urgente, enquanto a de outros, nem tanto.

“Nos resta, nestas situações, o covarde patrocínio à criminalização do opositor, na tentativa de aliviarmos os erros dos heróis que nos convém”

E, não nos enganemos. Caso invertêssemos os papéis, dificilmente o desfecho seria diverso. Pelo menos, é o que aponta Democracia em Vertigem ao desnudar o discernimento de significativa parcela de nossos governantes quanto a servirem à Pátria, e não se servirem dela.

Como recompensa, ganhamos, no calor dos escândalos, alguém para odiar e para idolatrar; alguém para sufragar e que possa, até mesmo, receber a culpa pela desonestidade e pela má-sorte nossa de cada dia! Ao bel prazer da conveniência, recebemos um nome para gritar de ódio ou pela necessidade de se ter “um salvador” que, no fundo, nada salva, nem a própria pele quando que se findam os recursos nas instâncias que julgam seus próprios enganos públicos.

Infelizmente, na Alvorada, há pouco respeito pela História do Brasil, que, um dia, tende a ser o grande juiz do processo que poderá livrar do “carma do recomeço” toda uma Nação! Então, a democracia será mais que uma poesia bonita dos livros escolares que ainda resistem aos novos tempos – onde a ignorância tem status de multinacional.

“Ao bel prazer da conveniência, recebemos um nome para gritar de ódio ou pela necessidade de se ter “um salvador” que, no fundo, nada salva, nem a própria pele quando que se findam os recursos nas instâncias que julgam seus próprios enganos públicos”

A real democracia não será mais aquela que se movimenta, tão somente, quando os mais abastados se sentem ameaçados! Tudo porque, a política brasileira, apesar de seu DNA público, é, há décadas, pesada, recalculada e precificada pela iniciativa privada. Há quem compre, consuma e arrote em verde e amarelo esta mercadoria mal acabada em nossas caras pintadas, cegas e surdas para tudo aquilo que não esbarra no óbvio.

Enquanto isso, esperneamos e travamos debates acalorados a fim de sermos uma sociedade civil capaz de se auto organizar, mesmo sem termos a mínima vocação para tal. Somos, afinal, uma Nação que discute democracia numa plataforma de filmes e de séries que se capitaliza por meio de seus mais de 100 milhões de assinantes. É a tal democracia tupiniquim possível, paga na fatura do cartão de crédito – uma pedalada, por que não?

A febre de um país doente por tradição só vai baixar quando pararmos de defender lados e nomes, e começarmos a acastelar condutas, não aceitando o errado, mesmo quando o que não está certo for produto de nossa militância. Ao tutelarmos comportamentos, seremos, nós, também, e sem exceção, os fiscalizados, e não apenas os acólitos e inquisidores da era moderna – relativização moral complicada de se colocar em prática num Brasil onde quase tudo pode, desde que ninguém fique sabendo.

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Por Carla Fiamini. Graduada em comunicação social com habilitação em jornalismo, pós-graduada em docência no ensino superior e pós-graduanda em neurociência e comportamento. Especialista em assessoria de imprensa, com ênfase em órgãos públicos e mandatos, em gerenciamento de crise e em media training. Também é escritora e palestrante.

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