Opinião

A volta da rádio Roquette-Pinto — por Thiago Gomide

Têm coisas que só acontecem no Brasil. Como jornalista e historiador, já devo ter escutado essa batida frase umas mil vezes. Quando me faltam assuntos em mesa de bar, costumo sacar alguns desses absurdos. É susto na certa. Em 2017 minha coleção ganhou um triste capítulo: a mudança do nome da rádio Roquette-Pinto para 94 FM, diminuindo a trajetória do engenheiro que lutou pela implementação da radiodifusão no Brasil, que refletiu o veículo como potencial educador e da própria emissora, uma das mais antigas em atividade no nosso país. O dial é 94.1 FM, o que para um filho de velejador soava ainda mais impactante, afinal todos sabemos que o 0,1 no oceano pode te levar para o rochedo em vez do plácido encontro com a terra firme.

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Fui voluntário da Roquette-Pinto de 2010 a 2017, principalmente por acreditar na ferramenta como modificador social, como instrumento para permitir dar voz àqueles que não encontram caminhos nos veículos comerciais. Decidi pelo afastamento exatamente quando trocaram o mais simbólico valor da emissora. Apesar de todas as vírgulas, Roquette-Pinto foi um visionário, modificou a comunicação e, além de tudo, doou ao Estado a outorga da rádio. Não fazia, não faz e nunca fará sentido alterar a primeira fileira do DNA. Antes de qualquer conversa com a nova direção, peguei minhas trouxinhas e anunciei que estava de partida. Essa rádio me alterou como ser humano. A tristeza de sair foi impressionante. Você só costuma ser voluntário daquilo que ama e acredita. Mal eu sabia que era um até logo.

Ao receber o convite para ser diretor-presidente da rádio Roquette-Pinto, não pensei duas vezes. Ignorei qualquer outra proposta. Não vi salário. Não medi o tamanho do desafio. Não negociei cartas na mesa. Aceitei porque era um reencontro. Era a chance de voltar com as propostas que conhecia, que aprofundei no mestrado e que marcam minha trajetória na educação e na comunicação. No primeiro mês, ainda em janeiro de 2021, com ricas conversas e sem resistências, voltamos com o nome original da emissora. Apagava-se, portanto, a descontextualizada 94 FM. Como o leitor deve imaginar, o X da questão não se restringia ao óbvio: precisávamos resgatar urgentemente as origens e a credibilidade da Roquette. E isso não seria de uma hora para outra.

Defendendo que rádio pública precisa ser mais do que só Ibope, seguimos implementando o que os ouvintes acabaram cunhando como “rádio da oportunidade”

Em 87 anos, a Roquette-Pinto alcançou alguns marcos históricos. Em 1963, por exemplo, Cecília Meireles e Manuel Bandeira eram os redatores do programa ‘Vozes da Cidade’. Pouco antes de lançar o sucesso “Pra não dizer que não falei das flores”, Geraldo Vandré trabalhou como produtor na rádio. Boni, o homem que ajudaria a mudar a TV no Brasil, foi estagiário da Roquette, participando de formações educativas ministradas nos estúdios. O rock dos anos 80 foi muito badalado aqui, em especial no programa de ‘Alpa Luiz’. A tradição de abrir portas para novos artistas, não cobrando em hipótese alguma jabá, é tradição há décadas. Los Hermanos e Maria Gadú são alguns que encontraram nos microfones da Roquette uma forma de mostrar o talento. Profissionais da educação sempre estiveram envolvidos em projetos, encurtando distâncias entre professores e estudantes.

Sede da rádio Roquette-Pinto já está em contagem regressiva para o centenário do rádio no Brasil. (Imagem: Divulgação)

Com essa contextualização e mirando grandes referências em rádios cultural-educativas pelo mundo, começamos a propor aos ouvintes (e aos parceiros) a nova-velha Roquette. “Isso não dá audiência”, alertavam. Defendendo que rádio pública precisa ser mais do que só Ibope, seguimos implementando o que os ouvintes acabaram cunhando como “rádio da oportunidade”. Centenas de músicos são revelados mensalmente. O ‘Som da Rua’, por exemplo, dá chance do músico de rua se apresentar no auditório. Pequenos empreendedores, em plena crise, tiveram divulgação na Roquette, sem nada darem em troca. Estudantes foram capacitados para o Enem ouvindo a rádio, em uma iniciativa inédita e que já deu frutos. Festivais literários do interior do Rio de Janeiro contaram com a parceria da emissora – sem gastarem um real. Museu da Imagem e do Som, Escola de Música Villa-Lobos e Sala de concertos Cecília Meireles são algumas das entidades que agora têm espaço na programação. Diferentes poderes também se encontram na 94.1 FM: tribunais, órgãos de controle, legislativos, diversas secretarias, procuradoria-geral do Estado, consulados e até o Exército. Todos com seus olhares educacionais.

Novembro de 2021, 11 meses da nova-velha Roquette. Concorrendo contra as principais emissoras do Rio, vencemos a etapa regional do prestigiado Prêmio Sebrae de Jornalismo. Era a rádio pública educativa no pódio novamente, depois de décadas. Lembrei no ato que, na primeira reunião de equipe, a turma que eu tinha convencido a entrar ou continuar comigo nessa (Toni Platão, Ermelinda Rita, Pablo de Moura, Fernando Nogueira, Celma Padilha e Che Oliveira são alguns) foi enfática dizendo que estava complicado arrumar entrevistados, até mesmo no governo. “Preferem qualquer outra”, ouvi. Era óbvio que, apesar do carinho, muitos tinham se afastado. Com a Roquette sendo Roquette, esse problema evaporou. Com prêmios, vencidos ou indicações, o inverso está acontecendo. Precisa ser assim. Como precisa também que talentos da emissora sejam contratados pelos veículos comerciais. Priscila Xavier foi a última a nos deixar, abrilhantando a BandNews FM.

Com tantos talentos e com a volta da credibilidade, a tal audiência, segundo dois medidores, subiu

Quem entra no Palácio Guanabara, sede do poder fluminense, consegue ver um estúdio avançado da Roquette. Esse era um sonho percorrido há mais de 40 anos. E que já serviu de cenário para outro velho desejo: levar a Roquette para a TV. Estreou há dois meses a série ‘O Rio que dá certo’, em parceria com a TV Câmara. O auditório da emissora, o mais antigo de rádio do Rio de Janeiro, foi refeito. O piano que Tom Jobim tocou deixou de ser usado como base para copinho de café. Uma obra, feita por funcionários da própria Roquette, revitalizou o que parecia impossível. Tudinho com dinheiro contado. Airá “O Crespo”, um dos grandes nomes do grafite nacional, nos brindou com sua arte tanto no Guanabara como nas dependências da Roquette no Centro da cidade. No primeiro caso, já virou ponto turístico, com direito, tal qual meus alunos dizem, “ser instagramável”.

Voluntários sempre foram marcantes na trajetória desse quase nonagenário. Nelson Sargento é um dos que marcaram história. Atualmente se juntaram a essa lista, entre tantos incríveis, Ricardo Cravo Albin, Lula Vieira, Haroldo Costa, Nilo Romero, João Donato, Nega Gizza e Ito Melodia. A lista é enorme, acredite. Todos são referências em suas áreas. Com tantos talentos e com a volta da credibilidade, a tal audiência, segundo dois medidores, subiu. Educação e cultura dão ibope. Roquette sendo Roquette dá retorno também nesse campo. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, escreveu o antigo produtor Geraldo Vandré.

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Por Thiago Gomide. Jornalista e diretor-presidente da rádio Roquette-Pinto.

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