Por Júlio Lubianco. O texto sobre o filme “Boca Fechada” foi publicado originalmente no site da LatAm Journalism Review (LJR)
Três jornalistas de rádio, de três cidades do interior do Brasil, os três assassinados por pistoleiros contratados por mandantes interessados em calar suas vozes críticas ao poder local. Estas histórias se intercalam no documentário brasileiro “Boca Fechada”, lançado em plataformas de streaming em fevereiro. A produção é sobre assassinatos de comunicadores que atuam em cidades afastadas dos grandes centros do país.
“Encontramos muitas recorrências dentro dessa realidade de comunicadores assassinados no Brasil. São muitos comunicadores mortos em cidades pequenas, com o mesmo modus operandi: crime contratado, pistolagem, pistoleiros que chegam de moto, metralham a pessoa sem nenhuma chance de defesa e depois vão embora. Como são muitas as coincidências, é possível chegar a um lugar comum para esses crimes”, disse à Latam Journalism Review (LJR) o jornalista Aquiles Lopes, que codirigiu o documentário.
Por acontecerem em sua maior parte distantes das grandes cidades, os assassinatos de jornalistas no Brasil são pouco conhecidos pelo grande público. Mas os números impressionam: de 1995 a 2018, foram 64 execuções por causa do exercício da profissão, segundo um levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público citado no filme. Em 2021, o Brasil entrou na zona vermelha de liberdade de imprensa, a segunda pior categoria na classificação de risco da ONG Repórteres sem Fronteiras.
O trabalho de pesquisa começou anos antes, quando Lopes escreveu a dissertação “Comunicadores executados no Brasil por conta do exercício profissional” durante seu mestrado em direitos humanos na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Vi que tinha gente estudando o tema, com dados que comprovavam que era uma prática, não um acidente de percurso
“Houve um caso emblemático no interior de Pernambuco, do Jota Cândido, que foi metralhado na porta da rádio em 2005. Isso ficou no meu radar de alguma maneira. Só voltou quando li um material de 2016 da ONG Artigo 19, que falava sobre execuções de comunicadores no Brasil. Vi que tinha gente estudando o tema, com dados que comprovavam que era uma prática, não um acidente de percurso”, conta Lopes.
Para trazer essa realidade à tona, Lopes se juntou com o cineasta Marcelo Lordello para produzir o documentário. O filme “Boca Fechada” reconstitui os assassinatos dos comunicadores Israel Silva, Jairo de Sousa e Gleydson Carvalho para traçar as características desse tipo de crime no Brasil e identificar os pontos que se repetem em muitos dos casos.
Fazem parte de ecossistemas muito pequenos, da raiz do coronelismo brasileiro
“Esses comunicadores trabalham a maior parte em rádios muito pequenas, estruturas muito pequenas, e fazem parte de ecossistemas muito pequenos, da raiz do coronelismo brasileiro, em que um grupo político ou outro controla tudo. Controla a comunicação, o comércio, sistema imobiliário, todo o setor que entrega, quem paga, onde gasta”, afirmou Lopes.
“Os padrões [também] se repetem quando esses casos entram na fase judicial. [O filme busca] entender como também está implicado quem mandou matar e como não se faz justiça sobre isso. Lidamos muito com as pessoas que ficam, e como eram esses traumas, como era essa sensação de injustiça”, declarou Lordello à LJR.
Em Lagoa do Itaenga, cidade de 22 mil habitantes no estado de Pernambuco, Israel Silva comandava um programa na rádio comunitária Itaenga FM 98.5. O foco do noticiário eram ocorrências policiais e informações sobre a política local.
“A primeira vez que ele foi ameaçado lhe foi dito que não poderia falar o nome de Fulano. Ele ficou apavorado. Fomos à delegacia e fizemos um boletim. Umas semanas depois, foram uns caras lá na rádio, mas ele não estava. Nesse dia, ele foi escoltado por dois sargentos. A partir de então, passou a ficar com medo de estar sozinho”, diz no filme Rosineide Silva, viúva de Israel.
O comunicador do interior de Pernambuco foi assassinado em novembro de 2015 após deixar os filhos na escola. O inquérito policial concluiu que ele foi executado vingança de traficantes denunciados no programa de rádio. Em 2018, três pessoas foram condenadas pelo crime.
Falei para a direção da rádio que nem mesmo queria noticiar fatos policiais
Desde o assassinato de Israel Silva, o radialista Júlio Filho passou a ocupar o horário, mas passa longe dos assuntos abordados pelo antecessor. “Não farei um programa da mesma forma que era feito. A população ficou decepcionada, esperava a mesma linha combativa. Eu falei para a direção da rádio que nem mesmo queria noticiar fatos policiais”, diz o apresentador em entrevista ao documentário “Boca Fechada”.
Dos três casos retratados, o de Gleydson Carvalho é o que teve mais visibilidade. Ele foi assassinado em 2015 por um pistoleiro enquanto estava no ar, dentro do estúdio da Rádio Liberdade FM. O crime ocorreu em Camocim, cidade de 68 mil moradores no Ceará, mas a repercussão foi internacional. Na época, o norte-americano The New York Times reportou sobre a tendência alarmante de assassinatos de jornalistas no Brasil.
Gleydson Carvalho também denunciava casos de corrupção envolvendo políticos locais. Em 2019, os três executores do crime foram condenados a penas entre 23 e 27 anos de prisão. Os mandantes seriam dois tios do ex-prefeito da cidade vizinha Martinópole, segundo o Ministério Público. Mas eles nunca chegaram a ser julgados.
O sobrinho dos mandantes, o ex-prefeito James Bell e alvo de críticas de Carvalho, foi afastado do cargo no fim de 2016, pouco mais de um ano depois da morte do jornalista por improbidade administrativa. Ele nega envolvimento com o crime. O ex-prefeito renunciou à sua candidatura nas eleições municipais de 2020.
Em janeiro de 2021, Gleydson Carvalho foi homenageado com um busto em Martinópole. Em agosto, o monumento foi vandalizado.
Em Bragança, cidade de 128 mil habitantes no Pará, a equipe de produção do documentário “Boca Fechada” encontrou um ambiente hostil. Pessoas que seriam ligadas ao suposto mandante do assassinato de Jairo de Sousa foram até o hotel onde os profissionais estavam hospedados.
“A gente sentou e aí chegou um carrão com som alto, saem dois caras. A gente está num hotel que fica num posto de gasolina, sentados lá para ver o que vamos fazer no dia posterior. E aí o produtor local diz que [aquelas pessoas] são os sobrinhos do mandante. Isso foi no primeiro dia que a gente chegou”, destacou Marcelo Lordello à LJR.
Jairo de Sousa trabalhava na Rádio Pérola, onde fazia críticas e denúncias a políticos locais. Ele foi executado em 2018, supostamente a mando de um vereador por R$ 30 mil segundo o Ministério Público, conforme reportado pelo Projeto Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). O político nega o crime, mas não quis dar entrevista para o documentário. “Teve uma certa polêmica se conseguiríamos fazer o filme sem trazer o outro lado. Mas a gente buscou. Eles que não quiseram falar”, comentou Lordello.
Não tem mais ninguém fazendo o que ele fazia. Como ele denunciava e batia nos grandes
“Bragança está sofrendo calada porque não tem mais ninguém fazendo o que ele fazia. Como ele denunciava e batia nos grandes,” diz no filme o filho de Sousa, o também jornalista Jairo Sousa Júnior. Ele hoje é repórter e apresentador da emissora local TV Mania. “Eles tiraram meu pai e tiraram meu medo. Se for para fazer o que ele fazia, eu estou disposto também.”
Dirigido pelo jornalista Aquiles Lopes em parceria com o cineasta Marcelo Lordello, o documentário “Boca Fechada” está disponível em plataformas como YouTube (chamada abaixo), Google Play, Apple TV, Now, Vivo Play e Cine Brasil TV.
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