Burnout, a imprensa e o suicídio no trabalho

“É preciso que a imprensa leve essa reflexão para a sociedade”. Portal Comunique-se publica artigo de Wagner Siqueira. Em análise, dramas provocados pelo Burnout — como o suicídio

Os dramas existenciais provocados pelo Burnout, que vão de depressões, frustrações, crises, fadiga psicológica e até suicídios, como a imprensa internacional tem veiculado em números alarmantes há quase duas décadas, são certamente as consequências das novas formas de organização do trabalho praticadas nestes primeiros anos do Século XXI. Somente agora a imprensa brasileira começa a dar o devido destaque ao tema, como aconteceu em edições anteriores dos jornais O Globo e Estado de S. Paulo.

As relações de trabalho já não mais se orientam pela antiga lógica que impelia os sindicatos à luta pela redução da jornada de trabalho, pelo aumento de salários e dos ganhos de produtividade e, somente subsidiariamente, pela melhoria das condições de trabalho. Foram esses os elementos predominantes que ensejaram o desenvolvimento da economia de mercado, o crescimento econômico-social e a sociedade de consumo.

Antes, a realização humana não se restringia ao trabalho em si, mas se expandia preponderantemente na família e nas distintas formas de relações comunitárias (clubes, associações, sindicatos, igrejas, vizinhanças, moradores, parentes), tudo assegurado e propiciado pelo acesso financeiro regular a que os assalariados dispunham através de vínculos empregatícios estáveis, quase permanentes. As novas formas de organização do trabalho são agora inteiramente diferentes, nada mais têm a ver com esse passado que ainda teima em existir.

“Somente agora a imprensa brasileira começa a dar o devido destaque ao tema”

Não são os problemas pessoais não tratados dos empregados que os levam a atos de desespero e ao Burnout nos ambientes de trabalho. Esses atos são a resposta dilacerante de empregados, ditos colaboradores e empreendedores, que sucumbem no cotidiano de uma realidade de trabalho que lhes é totalmente adversa. São as consequências da organização e da implementação de processos de trabalho que violam a natureza humana. São a expressão de revolta e de impotência ante uma situação inflexível e intransponível, em que não se vislumbram condições objetivas de escapar ou de, pelo menos, atenuar.

Aquele colaborador que se suicida como vítima definitiva do Burnout nos convoca para ver o que é visível, mas não é visto no mundo das organizações. Estamos crescentemente produzindo sobreviventes, mortos-vivos ou zumbis no cotidiano de nossas organizações, e nem nos damos conta disso. É claro, os reiterados casos de suicídio nos escandalizam! Nunca se exaltou tanto “o trabalho em equipe”, “o vestir a camisa”, “o ter o espírito de grupo”, mas as avaliações individualizadas de desempenho e de cumprimento de metas e de resultados produzem o dilaceramento psicológico e moral do empregado-empreendedor como pessoa.

O empregado transforma-se na prática no empregador de si mesmo. Os trabalhadores já não têm razões para se contrapor ao capital. Se o assalariado é transformado em seu próprio empregador, não há o que falar em luta de classes, na contradição entre salário e lucro, em mais valia, ou nos interesses antagônicos dos patrões e dos empregados. A velha luta de classe se transfere agora para o interior do indivíduo, invade a individualidade do colaborador, absorve a sua psique. Dilacera o indivíduo como pessoa.

“O empregado transforma-se na prática no empregador de si mesmo”

É claro, o capital e o trabalho continuam plenamente presentes, mas o conflito entre ambos se transfere artificialmente para o interior do indivíduo. Antes o conflito social era regulado pelas negociações e acordos coletivos produzidos entre as representações patronais e os sindicatos dos trabalhadores, pelo respeito à legislação trabalhista e previdenciária, e pela intermediação direta do Estado através da Justiça do trabalho.

Hoje, a responsabilidade pela administração desse conflito irreconciliável se dá dentro de cada indivíduo, empregado e simultaneamente empreendedor, colaborador e subordinado, cada vez mais submetido às cobranças de desempenho e à execução de metas e de resultados.

É preciso que a imprensa leve essa reflexão para a sociedade. O suicídio é o ato derradeiro de libertação de muitos que, ao fracassarem, não suportam mais a submissão às estratégias sutis de exploração humana praticadas hoje no mundo do trabalho sob a fachada soi-disant do empreendedorismo corporativo. É preciso que a imprensa leve essa reflexão para a sociedade e que os jornalistas entendam o papel fundamental deles nesse processo.

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Por Wagner Siqueira. Conselheiro federal pelo Conselho Regional de Administração do Estado do Rio de Janeiro (CRA-RJ) e diretor-geral da Universidade Corporativa do Administrador (UCAdm).

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