Acusações de produzir e divulgar fake news, xingamentos, ameaças de agressões físicas, convites ao exílio e até manifestações de desejo de morte. Esta é a rotina de alguns jornalistas brasileiros nas redes sociais. Os gatilhos podem ser a publicação de uma reportagem assinada pelo profissional, uma pergunta em uma coletiva de imprensa ou o contato com uma fonte. O assédio fica mais intenso quando uma conta com centenas ou milhares de seguidores posta uma crítica ou mesmo dá o pontapé inicial à avalanche de insultos. Quando o autor da crítica ou ataque tem vinculações com governantes ou partidos, grupos que militam politicamente nas redes sociais agem de forma articulada. Eles procuram desacreditar o profissional e a informação publicada.
O jornalista Leonardo Sakamoto (UOL/Repórter Brasil), o colunista de O Globo Ancelmo Gois, as repórteres Natália Portinari (Época) e Isadora Peron (Valor Econômico) são exemplos recentes. Esses e outros profissionais que tiveram de lidar com ofensivas nas redes sociais. Em todos eles, o ponto de partida foram refutações públicas às suas reportagens, em alguns casos em meio a ofensas pessoais.
Após a publicação de “A história de Lulu Kamayurá, a índia criada como filha pela ministra Damares Alves” na última semana, a foto de Natália Portinari passou a circular com a acusação de que teria invadido aldeia indígena para fazer a apuração. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) também publicou crítica aos jornalistas que assinam a reportagem. O filho do presidente Jair Bolsonaro qualificou-os como “mal informados” e levantando suspeitas sobre seu caráter.
Em 30 de janeiro, Ancelmo Gois publicou uma nota sobre a retirada de vídeos relacionados a filósofos e temas de esquerda do site do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines). O Ministério da Educação não se limitou a negar o fato. Por meio de nota pública, a pasta fez acusações contra o jornalista. Afirmou que o Ancelmo Gois “foi treinado em marxismo e leninismo” pelo Partido Comunista Soviético. A partir da publicação da nota, o premiado profissional passou a ser qualificado como produtor de fake news em postagens que alcançaram mais de 2 mil perfis.
As agressões verbais contra Leonardo Sakamoto, por sua vez, começaram depois de ele publicar em seu blog, em 27 de janeiro, uma reportagem sobre possíveis efeitos da mais recente Reforma Trabalhista sobre indenizações por danos morais a vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG). Segundo fontes entrevistadas pelo jornalista, a reforma limita o valor das compensações desse tipo.
O economista Pedro Fernando Nery publicou em sua conta no Twitter uma crítica ao título do texto, que havia sido compartilhado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT). “Manchete do Sakamoto enganosa. Quanto oportunismo!”. A postagem de Nery não deixa claro se a acusação de oportunismo se dirige a Sakamoto ou Haddad. Contatado, o economista não respondeu até a publicação desta reportagem.
A partir da postagem, veículos de mídia identificados com a direita passaram a distribuir textos e imagens qualificando a reportagem como fake news. As redes sociais do jornalista foram inundadas por agressões verbais: “lixo”, “abutre oportunista”, “mau caráter”. Havia até sugestões para que ele deixasse o país junto com Jean Wyllys. O congressista anunciou ter desistido de assumir o mandato por causa de ameaças à sua vida.
“Críticas e o debate educado fazem parte da democracia. Mas esse é um caso exemplar de como parte das pessoas, guiada pela desinformação, destila ódio sem ler ou tentar entender o que leu”, diz Sakamoto.
Para Natalie Southwick, coordenadora do Programa para as Américas do Sul e Central do Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ), “rotular jornalistas e meios de comunicação como fake news é absolutamente prejudicial à segurança de jornalistas, à liberdade de imprensa e à sociedade como um todo”. De acordo com ela, esse tipo de prática cria um clima de auto-censura.
Southwick aponta que é uma “retórica especialmente popular entre líderes autoritários ao redor do mundo”. Sem distinção de esquerda ou direita, sinaliza. “Da Venezuela à Turquia, passando pelas Filipinas, que a usam para se imunizar contra a cobertura midiática crítica”.
O exercício de atividades típicas da profissão é outro gancho frequente para enxurradas de ofensas nas redes. A imagem da repórter Isadora Peron fazendo uma pergunta ao ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, em uma coletiva na segunda-feira, 4, circula nas redes com sociais comentários depreciativos. “Desinformada jornaleira militante” foi uma das definições veiculadas por internautas.
Também nesse caso, Eduardo Bolsonaro engrossa as fileiras ao repercutir a postagem para seus mais de 1 milhão de seguidores. Ele insinuou que a pergunta da repórter seria manifestação favorável a bandidos e contrária a policiais. “Anta”, “lixo”, “retardada” e comentários sobre a aparência da jornalista se seguiram à postagem.
Ao se reunir com uma fonte em local público, o comentarista da GloboNews Octavio Guedes foi difamado nas redes. Uma foto em que Guedes aparece almoçando com o procurador-geral do MP-RJ, Eduardo Gussem, circulou associada a textos com insinuações de que estaria “recebendo informações sigilosas do chefe do MP/RJ”.
Mesmo após o profissional esclarecer que o contato com fontes é parte do processo de apuração jornalística, postagens insinuavam que o encontro levou a GloboNews a “reduzir drasticamente” os “ataques” ao senador Flávio Bolsonaro. O parlamentar é citado em investigações do MP-RJ sobre movimentações bancárias atípicas feitas por Fabrício Queiroz, um de seus assessores quando era deputado na Assembleia Legislativa fluminense.
Há ainda ofensivas não motivadas diretamente por reportagens. Juca Kfouri, colunista da Folha de S.Paulo e do UOL, recebeu ameaças na caixa de comentários de seu blog. Em janeiro, Juca divulgou as ameaças e o autor delas. José Emílio Joly Júnior escrevia mensagens como “um dia vou cruzar na sua frente e te encher de porrada na cara!”. “Sou ex-militar (…) e consigo achar qualquer animal nem que seja no inferno!”. O jornalista denunciou o caso ao Ministério Público e à Delegacia de Crimes Cibernéticos.
Em post na última semana, Carlos Bolsonaro, outro dos filhos do presidente e vereador no Rio de Janeiro, pergunta a seus seguidores: “alguém conhece esse tal de @cafecomkremlin que anda curtindo tweets em prol de lulla?”. O perfil é do jornalista Sandro Fernandes, brasileiro atualmente em Bruxelas. Foi a deixa para centenas de xingamentos – incluindo comentários homofóbicos – e ameaças ao profissional tomassem seu perfil. Uma das ameaças foi feita por Flavio Pacca. Ex-candidato a deputado federal pelo PSC-RJ, ele é instrutor de tiro da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Comentários depreciativos sobre a imprensa ou agressões verbais a jornalistas são frequentes na atividade online do vereador. 42% dos 273 tuítes publicados por Carlos Bolsonaro em janeiro de 2019 tiveram esse conteúdo.
Postagens questionando a qualidade do trabalho de jornalistas a partir de informações privadas e erradas circulam desde terça-feira, 5. O deputado federal Alexandre Frota (PSL-SP) reproduziu uma montagem (abaixo) que inclui a foto de uma jornalista homônima à repórter Marina Dias, da Folha. O post não está mais disponível online.
Outros profissionais são alvos costumeiros: cada postagem de Reinaldo Azevedo (BandNews FM/RedeTV/Folha), Míriam Leitão (O Globo/CBN/TV Globo), Marcelo Lins (GloboNews), Mônica Bergamo (Folha de S. Paulo) e Vera Magalhães (Jovem Pan/Estadão) é seguida de centenas de comentários agressivos. No caso das jornalistas, o conteúdo de muitos é sexista.
“Jornalistas atuam na esfera pública e é normal que sejam objeto de crítica”, comentou o presidente da Abraji, Daniel Bramatti. “Mas muitos ataques têm claro objetivo de intimidar os profissionais e reduzir o impacto de informações publicadas por eles. Isso obviamente causa danos aos jornalistas, mas também à sociedade, já que um ambiente marcado pela intimidação não condiz com a liberdade de informar e ser informado. Em resumo, quando um jornalista fica acuado, quem mais perde é você”.
A Abraji lançou em 2018 uma cartilha com orientações para jornalistas que são vítimas de assédio virtual.
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Por Marina Atoji.
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