Ele nunca deixou de ser o menino de Lins de Vasconcelos, bairro onde nasceu no Rio de Janeiro. Disfarçava bem, no alto de sua sábia velhice. Refugiava-se em sua solidão, evitava mídia, detestava holofotes – considerava-se só mais um mortal entre tantos, a despeito de sua genialidade imortal, a que deixou em livros, e a que deixou em lições para aqueles com quem conviveu. Fui um desses privilegiados. Nos tornamos amigos, ele um mestre. E acredite, leitor, Carlos Heitor Cony, quando pequeno, sonhava ser maquinista da Central do Brasil (algo hoje como um comandante de um grande avião). A vida tratou literalmente de lhe tirar dos trilhos, e inegável dizer que esse descarrilamento do destino foi bom para ele e todos nós: o colocou na trilha de muita gente que acompanhou sua carreira jornalística e literária. O Brasil perdeu uma de suas locomotivas pensantes, meus caros.
Na primeira entrevista concedida a mim, eu repórter foquinha do JB Online, em abril de 2001, ele revelou essa criança imutável que ocultava: “Sou o menino de Lins de Vasconcelos, espantado diante do mundo (após um minuto de silêncio). Ganhei e perdi muita coisa na vida, mas hoje, quando estou em dúvida com alguma coisa, consulto o menino dentro de mim”. Era uma criança grande, e assim formatou-se um grande homem, o seu segredo.
Obituário de mentira de um jornalista de verdade
Melancólico, às vezes no texto, e cético quanto a tudo na vida – exagero dizer pessimista – Cony moldou-se outro depois que deixou o seminário ainda jovem. Nisso lá se vão uns 75 anos. Tornou-se o homem profano que repetia ser, mas, em minha opinião, nunca deixou de buscar Deus, entender o Deus e o Cristo que ele ‘abandonou’ décadas atrás no seminário. Creio que nos últimos anos, em sua introspecção, tentava entendê-Lo, decifrá-Lo, e assim O desafiava em seus textos, com sua sagacidade. Numa de nossas conversas em seu escritório, eu insistia para que ele revelasse o que seria o “Messa para Papa Marcello”, o livro póstumo que deixou na gaveta (um mistério se ele o concluiu). Apostaria que este seria a sua prestação de contas com Deus. Em outra ocasião, de tanto eu perguntar sobre seus devaneios a respeito do mistério Dana de Tefé, ele me citou numa de suas crônicas na Folha.
Certa vez, em 2006, ele aceitou meu convite para visitar o antigo Seminário São José, no Rio Comprido, onde estudou havia décadas, e à ocasião era a então redação do Jornal do Brasil. Foram três horas de bom papo, em companhia também do jornalista Álvaro Costa e Silva, crítico do Caderno Ideias. (Em outra ocasião , eu e Álvaro, o ‘Marechal’, o entrevistamos no salão nobre da ABL para o programa Tribuna Independente, que eu apresentava na Rede Vida de TV, nos idos de 2009). No antigo seminário São José, Cony revisitou com olhar e peculiar memória cada cômodo do casarão secular. Lembrou nomes, episódios e até trejeitos de seus personagens. Confidenciou que ali se inspirou para escrever “Informação ao Crucificado”, o seu rompimento com o chamado Divino e a entrada neste mundo que conhecemos.
Foi um homem generoso para com os próximos. A iniciantes, não virou as costas. Em nosso pouco convívio (foram visitas ao seu escritório, sua casa, telefonemas, encontros marcados) ele sempre me apoiou. Quando pedi demissão do JB em 2003 para estudar, me ligou dando bronca. Quando sugeri um prefácio para o meu segundo livro de crônicas, ele o fez sem pestanejar – e apareceu no lançamento no shopping Rio Sul, numa noite de 2010, ficou ao meu lado por mais de uma hora para me prestigiar.
Cony foi uma máquina de escrever, uma arma. Foi a caneta afiada que sangrou a ditadura militar com seus textos nos jornais. Foi sarcástico no jornalismo e em seus livros. Mas principalmente foi um dos melhores ficcionistas que o Brasil já teve. Criativo demasiadamente, a ponto de deixar romances premiados e literatura de primeira num país que valoriza bundas na TV e músicas ruins que são pagas para tocar nas rádios. Cresceu nessa mídia sendo destaque e diferenciado. Pouca gente sabe (ou se lembra) que fez capas histórias da revista Manchete, que era amigo de Adolpho Bloch e biógrafo oficial do ex-presidente Juscelino Kubitschek, que ‘herdou’ a mega sala-suíte de JK no prédio da Manchete no Flamengo, que criou e escreveu as novelas Kananga do Japão e Dona Beija (ah, Maitê Proença…), sucessos na TV dos anos 80; e que sua famosa cadelinha Mila era de Bloch. (Num domingo, Cony o visitou na serra do Rio, desceu de carro e quando abriu a porta, em casa, a cadela pulou do carro em seu colo. Ela ‘abandonara’ o dono por Cony. O escritor viu nisso um grande ato de amor e pediu para ficar com o animal).
Cony gostava de se esconder, e atendia a entrevistas por dever do ofício que o catapultou ao sucesso involuntário, e por respeito aos colegas jornalistas. Mas sempre quis fugir do mundo; até em sua morte preferiu o anonimato – sem cerimônias, homenagens. Partiu quieto e silencioso como gostaria. Mas pela grande figura que se tornou, deixou um rastro ensurdecedor em todas as almas que conheceram seu trabalho. E nas que vão conhecer.
*Leandro Mazzini. Escritor, jornalista, pós-graduado em Ciência Política pela UnB, editor da Coluna Esplanada.
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