Na época da ditadura (1964-1985), órgãos da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) monitoravam de perto aqueles que eram considerados ameaça ao regime militar: comunistas e militantes de movimentos de esquerda. A SSP-DF mantinha perfis de vários jornalistas, principalmente os que tinham alguma ligação com partidos de esquerda ou sindicatos.
Ao descrever os jornalistas, a secretaria adotava um vocabulário informal, às vezes, grosseiro, revelando o temor do governo de um levante comunista na capital federal sob liderança dos profissionais de imprensa.
“Elemento nervoso e mal-educado”; “mau caráter” e “arrogante e insolente”, dizem os documentos sobre alguns profissionais. Sobre um deles, a SSP anotou: “para encobrir sua qualidade de comunista, costuma exibir uma foto ao lado do papa Paulo VI”. Sobre outro, destacou: “não consta que seja comunista. Ao que parece, [é] um inocente útil”. Um foi descrito como “picareta” e “vaselina”; outro, como “vaidoso e medíocre”, embora escrevesse mal e tivesse seus comentários revisados antes de publicados.
Os documentos, antes confidenciais, agora estão disponíveis para consulta no Arquivo Público do Distrito Federal.
O radialista Honório Dantas foi monitorado pela Divisão de Operações da SSP-DF quando criticou o então secretário de Segurança Pública do DF, Lauro Rieth, em uma reportagem sobre a prisão de despachantes nas imediações do Detran. “Costuma fazer reportagens críticas aos governos federal e do DF, como porta-voz de líderes sindicais e militantes de organizações esquerdistas”, diz o “histórico” de Dantas, produzido em setembro de 1983.
Três meses depois, durante uma entrevista, Dantas desentendeu-se com o então comandante militar do Planalto, Newton Cruz. O general irritou-se com as perguntas e com o gravador de Dantas, muito próximo de seu rosto. O radialista desligou o gravador e se afastou, mas Cruz não gostou e acabou empurrando Dantas, que foi irônico e se disse honrado por ter sido empurrado pelo general. Cruz foi atrás do repórter, pegou-o pelo braço e o fez pedir desculpas publicamente.
Em um documento de novembro de 1982, a secretaria aborda programas de rádio e televisão, bem como o noticiário de jornais da cidade. O jornalismo da TV Globo é classificado de “mais responsável” e com maior cuidado com os fatos; o da TV Brasília, de “linha moderada”; o da TV Nacional, de “medíocre”; e o da TV Capital, de “mais contundente”.
Em 1977, jovens profissionais de tendência esquerdista aliaram-se a nomes consagrados na imprensa e formaram a chapa Sindicato Livre para tentar derrotar o grupo que, desde o golpe de 64, comandava o Sindicato dos Jornalistas do DF. A Divisão de Informações da SSP-DF compilou dados de todos os componentes da chapa.
Um deles era Hélio Doyle, que foi chefe da Casa Civil do governo de Rodrigo Rollemberg. “É comunista”, dizia a SSP sobre a orientação política de Doyle. Armando Rollemberg, irmão do atual governador, foi identificado como “muito ligado ao comunista Hélio Doyle” e Heloísa Doyle, citada como “irmã do comunista Hélio Doyle”.
“Sabíamos que existiam agentes infiltrados, já tínhamos ideia disso. A gente ia para os lugares e tinha que tomar muito cuidado, porque nas manifestações tinha sempre alguém olhando. Não surpreende que existisse monitoramento, que tivessem informações”, disse Doyle à Agência Brasil.
Segundo o jornalista, a estratégia da chapa foi colocar os mais visados pelo regime em cargos distantes da diretoria. Ele próprio candidatou-se a delegado representante no Conselho da Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais, cargo que considerava mais “invisível” no radar da ditadura. Os documentos da SSP-DF, no entanto, classificaram a função de “importante e estratégica”.
A chapa Sindicato Livre foi vitoriosa, mas enfrentou obstáculos. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) tentou impugnar a candidatura de seus membros. O colunista Carlos Castello Branco, cabeça de chapa, freou as tentativas de desmonte, lembrou Doyle. De acordo com o jornalista, Castello Branco tinha boa relação com o então ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto.
“O Castello mexeu lá para não mexerem na chapa dele. E tem um detalhe do qual pouca gente fala. O delegado do Trabalho, que chamávamos de doutor Valério, embora fosse representante do Ministério do Trabalho na DRT, tinha um pouco de simpatia por nós. Então, uma série de coisas funcionou, e acabaram não impugnando ninguém.”
Com base na Lei de Acesso à Informação, os documentos confidenciais da SSP-DF tornaram-se públicos em fevereiro. Agora, podem ser consultados no Arquivo Público do Distrito Federal. Antes da quebra do sigilo, um edital convocou todas as pessoas citadas nos documentos que quisessem ocultar seus nomes em informações de caráter pessoal. Antes, só o próprio interessado podia ter acesso a essas informações.
“Seguimos o modelo do Arquivo Nacional e publicamos edital divulgando a necessidade de abertura dos acervos e comunicando aos que tivessem sido citados que se pronunciassem sobre a manutenção da restrição de acesso”, disse a coordenadora de Arquivo Permanente do Arquivo Público do DF, Marli Guedes.
Se houvesse dúvida sobre a inclusão de seu nome nos arquivos, a pessoa poderia pesquisar e, então, pedir o sigilo. O prazo para manifestação foi de 30 dias, mas ninguém reclamou informações pessoais. “A Lei de Acesso à Informação trata da transparência da administração pública, mas não afeta a intimidade”, explicou Marli.
Para Doyle, a abertura dos documentos é importante para preencher lacunas existentes desde os tempos de ditadura. “Os documentos têm de ser todos revelados. Os historiadores têm de ter esse elemento para escrever a história desse período, uma visão que ficou obscura durante muitos anos”, afirmou o jornalista.
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