Deve ter sido na Treibhaus, uma danceteria gótica que eu frequentava nos Jardins no começo da década de 1990, ou no “Zensor”, um programa de electronic body music que eu ouvia e gravava no começo da mesma década citada, que conheci o trabalho do Trisomie 21, banda francesa formada em 1981 pelos irmãos Philippe e Hervé Lomprez.
Até então, eu não sabia que o nome da banda era o termo médico usado para (o cromossomo extra que causa) a síndrome de Down.
Com a maioria dos títulos em inglês, as músicas são cantadas em francês, ora convidando para uma pista lotada, como “Logical Animals”, “Breaking down”, “Is Anybody Home, Pt. 1”, “Djakarta”, “Waiting for”, “The Last Song”, “The Missing Price” e “Sharing Sensation”, ora para um quarto vazio, como “La Fête Triste”.
Senti saudade da banda, a cujo show em São Paulo, em 2005, tive o prazer de assistir, quando o dublador Paco, personagem da novela das 9 da Globo, que acaba na data em que escrevo este texto, apresenta o monólogo sobre a filha dele, como transcrevo abaixo:
Trissomia do cromossomo 21. Síndrome de Down. Minha filha, recém-nascida, no colo da mãe, e o médico, na frente de nós, explicando. Prega no canto do olho, mindinho virado… pra dentro, hipotonia muscular… a orelha mais baixa. Muita gente acha que, quando nasce uma criança, nasce um pai, uma mãe. No meu caso, não era verdade. Minha filha tava lá, mas eu tava longe… antes de ela nascer… querendo voltar no tempo… tentando recuperar quem eu era… incapaz de dizer: “Minha filha tem síndrome de Down”. Até queria falar, mas as palavras não saíam, tinha vergonha, me senti humilhado. “Meu filho é novo demais pra conviver com esse problema.” O problema, no caso, era Mel, e a solução pra mãe desse menino era minha filha sair da escola. É engraçado que nessa época eu escutava muitos nãos: gordo demais, bonito de menos, engraçado demais. Aí eu… vagando assim pela rua sem ter direito o que fazer… às vezes eu encontrava um conhecido, ah, eu mentia: “Começando ensaiar uma peça, vou entrar numa novela”. Claro, eu mentia sobre a minha filha: “Ela tá bem, tá na escola”. Eu e a mãe da minha filha, num périplo pra tentar arrumar uma escola que aceitasse a Mel. Um dia… nós távamos na casa de uns amigos, eu tava na beira da piscina, e eu escutei… as crianças rindo… apontando. Eu, com a força do meu pensamento, eu tentei de tudo pra Mel fechar a boca, botar a língua pra dentro. Teimosa, insistia em ficar fora da boca. E as crianças lá rindo, apontando: “Ela é bebê, com a boca aberta”. A Mel, ao invés de fechar a boca, falou em alto e bom som, de maneira espontânea, natural, tranquila: “É porque eu tenho síndrome de Down”. Aí fez aquele silêncio, né? Silêncio constrangedor, mas respeitoso. Eu também fiquei em silêncio. Tudo na vida da minha filha tinha sido uma conquista, inclusive falar. A hipotonia afeta a musculatura da boca. Mastigar… falar… engolir, articular, tudo é difícil. Mas, antes de mim, porque eu não tinha nenhuma dificuldade, nenhum impedimento, a não ser com minha cabeça, a Mel falou, em alto e bom som, tranquila: “É que eu tenho síndrome de Down”. Naquele momento… eu aprendi a falar também… naquele momento, aprendi a ser pai. Um bilhão de pessoas no mundo têm algum tipo de deficiência. É uma minoria gigantesca. E a pergunta que fica é: quem decide quem é normal? Quem decide quem tem que ser celebrado, consertado? Ideias, mentalidades, preconceitos é que têm deficiência; as pessoas, não. A questão é que não é uma doença, é uma condição. E não é: “Você é diferente”. Não. Eu, você… você… vocês… nós somos diferentes. Tudo bem ter síndrome de Down, ser gordo, magro, careca, cabeludo, tudo bem ser diferente. Essa peça, no fundo, na verdade, é sobre um pai… um pai maluco, que demorou pra nascer, oito anos, depois de a filha ter nascido. Eu sei que isso não parece ser possível, mas acontece que nesse mundo… tudo é possível.
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