O machismo existe em redações brasileiras – e isso não é achismo, há levantamento que comprova tal cenário (dados abaixo). A situação (silenciosa, infelizmente) passa bem despercebida pelo leitor. Mas na segunda-feira, 11, o articulista Guilherme Goulart, do Correio Braziliense, imprimiu no jornal a face de um dos problemas profissionais mais graves na vida da mulher que decide seguir a carreira na comunicação. Na crônica “A Estagiária”, o jornalista escreve de maneira muito natural – pois é assim que a violência contra a mulher acontece – sobre Melissinha, que representa uma estudante que chega ao veículo para estagiar na editoria ‘Cidades’. “(Ela) logo mostrou a que veio. Decotinho perverso, coxas de fora, pezinhos docemente acomodados em sandalinhas rasteiras”, escreve Guilherme Goulart só para começar o texto que mais tarde foi duramente criticado nas redes sociais. Quem leu a versão no impresso certamente teve as mãos impregnadas pelo machismo que escorreu pelas páginas.
Na crônica, Guilherme Goulart escreveu seis parágrafos sobre a beleza da personagem descrita como a nova estagiária. O lado profissional aparece timidamente em dois momentos: o primeiro quando o jornalista diz que ela é estudante de uma faculdade particular de Brasília, e o segundo ele descreve que a futura jornalista não publicava nada sem checar as informações. “Sabia o que fazia, essa Melissa”. Fora isso, todo o resto da crônica se atenta a mostrar como a redação a tratou ao longo do período em que esteve no Correio Braziliense. Suspiros dos profissionais homens e olhares não tão amigáveis das mulheres. “Se dependesse da machalhada, a agora Melissinha tinha lugar assegurado nos céus de Júpiter, Urano, Netuno, Saturno e que deus mais se apresentasse”.
Guilherme Goulart segue relatando – com ironia – que o clima na redação “até ficava chato”, já que os colegas homens ofereciam ajuda à Melissa e a presenteava com “chocolatinho para cá, cafezinho para lá”. No final do texto, ele diz que a moça deixou o emprego para investir em outra oportunidade, dessa vez em televisão, e que apesar da “depressão” que tomou conta do ambiente, ela logo foi esquecida, pois a morena Daniela, estudante de comunicação de uma universidade pública de Brasília, chegou à editoria ‘Economia’. Para uma crônica, Guilherme Goulart só se esqueceu de falar que Daniela seria a mais nova vítima do machismo na redação do Correio Braziliense.
É irônico que esse texto tenha sido publicado em um impresso de Brasília onde muito recentemente o Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal realizou pesquisa que mostra justamente como é o assédio moral às mulheres que trabalham em redação. Os números são alarmantes: das 535 jornalistas entrevistadas, 417 (77,9%) disseram ter sofrido algum tipo de assédio moral por parte de colegas ou de chefes diretos; 78,5% afirmam que já enfrentaram algum tipo de atitude machista durante entrevistas; 70% já deixaram de ser designadas para uma pauta pelo fato de serem mulheres; 61,5% das jornalistas já vivenciaram situações em que, apesar de exercerem a mesma função de colegas homens, receberam salários menores do que os deles.
Será que o articulista Guilherme Goulart e a redação do Correio Braziliense não conhecem esses números? Será que as outras empresas de comunicação não tiveram acesso a este e tantos outros levantamentos que apontam para uma situação insustentável? Não há outra explicação: embora os números apontem para um cenário gravíssimo, o machismo nas redações é ignorado sumariamente todos os dias.
Em nome das milhares de Melissas, Danielas, Jaquelines, Carolines, Sandras, Nathálias, Mayaras, Brunas, Heloisas .. o Portal Comunique-se se solidariza, pois, além das dificuldades pela qual a profissão passa, as mulheres precisam ainda lidar com o machismo que as subestimam diariamente – mesmo que ele apareça em formato de crônica. Aos veículos de comunicação, fica o pedido claro de que episódios e ambientes assim precisam ser eliminados para ontem – isso mesmo, para ontem. Estamos atrasados.
O Correio Braziliense só falou sobre o assunto nesta terça-feira, 12. O impresso afirma que errou ao publicar o texto e que a opinião de Guilherme Goulart “não reflete os valores” da marca. O jornalista, por sua vez, apagou o texto da rede e escreveu uma segunda crônica chamada de “Um erro sem perdão”.
Se é que podemos dizer que a história tem um lado positivo, esperamos que a exposição ampla da crônica tenha resultado em uma lição valiosa para Guilherme Goulart, para o Correio Braziliense e para todos os profissionais das redações espalhadas Brasil afora.
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