Quando, em 1991, consegui ser demitido da empresa em que nos últimos anos meu trabalho de auxiliar administrativo se limitava a passar o dia procurando e guardando documentos fiscais em um arquivo morto, aceitei o convite de Gabriel Front, nome de guerra de um de meus amigos de curtições culturais, para ajudá-lo a fazer manutenção em um salão de festas. Educados na escola do rock, eu e Front não tínhamos um lugar mais convidativo para esperar a chamada de algum emprego do que um salão de festas para pagodeiro.
A fim de compensarmos nossos maltratados ouvidos e termos ânimo para continuar fazendo faxina, carregando caixas de cerveja, temperando e fritando frango a passarinho para a turma do pagode, eu e meu amigo pedimos ao dono, ou locatário, do salão um dia para abri-lo para um projeto que se havia acendido em nossa mente.
O nome que escrevemos no pano preto que ficaria esticado na frente da casa no dia da festa foi Harry, homônimo de uma banda de rock eletrônico de que gostávamos muito. Embora cantasse em inglês, a banda era brasileira, da cidade paulista de Santos.
O projeto estreou em 28 de agosto, dois dias depois de eu passar a segunda-feira toda colando cartazes e deixando convites nas lojinhas de discos das galerias do centro de São Paulo, trabalho este que encerrei visitando a redação da revista “Trip”, e um depois de eu comemorar mais um ano de vida.
Parte integrante da trilha sonora de “Laranja Mecânica”, um dos filmes favoritos de nossa turma (tanto que foi depois de eu assistir a esta adaptação cinematográfica feita pelo diretor estadunidense Stanley Kubrick que acabei conhecendo boa parte da obra do escritor britânico Anthony Burgess), a primeira música da “set list” do Front foi a “Nona Sinfonia de Beethoven”.
Meu alter ego, Edhson FM, que era responsável pela divulgação do projeto, tentava impressionar com os cartazes e convites que ele criava com decalque.
O Espaço Harry chamava a atenção não só porque tocávamos as músicas das bandas que os frequentadores das casas noturnas alternativas mais curtiam, como A Flock of Seagulls, Anne Clark, Bauhaus, Blondie, Blur, Buzzcocks, Clan of Xymox, Clash, Classix Nouveaux, Cocteau Twins, Cult, Cure, David Bowie, Dead Can Dance, Depeche Mode, Devo, Doors, Duran Duran, Echo & the Bunnymen, Einstürzende Neubauten, Fields of the Nephilim, Front 242, Gang of Four, Harry, House of Love, Jam, Jesus and Mary Chain, Joy Division, Killing Joke, Kraftwerk, Lou Reed, Love and Rockets, Ministry, My Bloody Valentine, New Order, Nick Cave and the Bad Seeds, Pink Industry, Pixies, Police, Ramones, Section 25, Sex Pistols, Siouxsie and the Banshees, Sisters of Mercy, Skinny Puppy, Smiths, Sonic Youth, Stone Roses, Sugarcubes, Talking Heads, The The, Velvet Underground, Who e Xmal Deutschland, mas também porque deixávamos à mesa várias publicações nacionais e estrangeiras, como “Folha de S.Paulo”, “O Estado de S. Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “Correio Braziliense”, “Veja”, “Melody Maker”, “New Musical Express”, “The Face”, “i-D” etc., para o público ver ou ler enquanto curtia as músicas da lista.
Se, por um lado, meu alter ego, Edhson FM, que era responsável pela divulgação do projeto, tentava impressionar com os cartazes e convites que ele criava com decalque, colando letra por letra, e os releases que ele redigia, por outro, Gabriel Front, que cuidava da discotecagem, caprichava tanto na programação, que se dava ao trabalho de listar todas as músicas, de forma que, se alguém quisesse saber que som havia rolado, por exemplo, das 17 horas, quando religiosamente o DJ apertava o “play”, até às 23, quando era pressionado o “stop”, era só olhar na lista.
Este serviço só era possível porque Front levava gravado tudo o que havia programado para tocar, tendo o trabalho apenas de virar a fita cassete.
Criado para oferecer música e informação, o Harry logo deixou de lado a segunda opção, porque, quando o público, formado principalmente por uma garotada que matava a aula da quarta-feira para curtir música gótica, electronic body music e outros sons estranhos aos ouvidos da massa, começou a afastar as cadeiras para dançar, o jeito foi o DJ aumentar o som e deixar os “harriers”, como chamávamos os frequentadores, correr para a pista.
Mas a festa durou pouco tempo, porque, algumas semanas após a estreia, Front, que ficou tocando o projeto sozinho depois que fui chamado para trabalhar como temporário no escritório de uma rede de comércio atacadista, teve de entregar as chaves do estabelecimento, que ficava na avenida Santo Antônio, em Osasco. Das duas, uma: ou ele esquecia a festa ou procurava outro lugar para fazê-la.
O primeiro lugar para o qual ele tentou levar o projeto foi o Blaue Engel, um café-teatro que, se eu não tivesse visto, não teria acreditado que existia em Osasco, uma vez que era uma façanha bancar uma casa de espetáculo em uma cidade tão apagada culturalmente, principalmente sendo produtor independente, mas não conseguiu convencer as pessoas à frente do cinematográfico estabelecimento com cara de anos 30 a abrir as portas para nossa festa.
Na mesma rua do café-teatro homônimo do filme de Marlene Dietrich, existia um restaurante no qual anos atrás havia funcionado uma lanchonete em que os “drugues”, como chamávamos nossos amigos de curtições culturais, costumavam realizar muitos “happenings”, animados encontros alimentados com cervejas, beirutes, panquecas e muita conversa fiada.
Foi lá nossa segunda estreia, graças ao contato do Front com o DJ da casa, que gostou tanto de conhecer nosso projeto que acabou se tornando parte integrante dele.
Àquela altura, a discontecagem já estava não só nas mãos do eclético mestre de cerimônias Gabriel Front, mas também nas de outros “harriers”, como João Carlos Petronilho (gótico e eletrônico) Glauco Félix (guitar bands) e Marcos Vicente (technopop), DJ este que, em 1993, criaria uma das mais bem-sucedidas baladas paulistanas dedicadas aos anos 80: o Projeto Autobahn.
Duas festas realizadas naquele estabelecimento, do qual fomos obrigados a sair depois da denúncia de que nosso barulho estava incomodando a vizinhança, merecem ser lembradas: a do dia em que foi sorteado um frango assado, ganho pela mãe de uma das frequentadoras mais cobiçadas da festa, e a do dia em que, enfurecido por causa das velas acesas na pista durante uma sessão gótica (rolava “Son to the Siren”, com This Mortal Coil), um dos DJs não oficiais meteu-lhes um chute!
O terceiro endereço também não poderia ser mais convidativo do que uma garagem na Vila Yara na qual, no fim de semana, funcionava um bar frequentado por amantes de música sertaneja.
Mas foi no palco deste estabelecimento nada convidativo aos roqueiros que um dia desligamos o toca-CDs para ver Mickey Junkies, a mais famosa guitar band osasquense, reunir o maior público da festa, deixando a garagem tão cheia, que algumas pessoas tiveram de curtir o show do lado de fora da casa, ao fim do qual, sem muito dinheiro no bolso, pagamos umas cervejas para a banda de nosso amigo de alma beat Rodrigo Carneiro.
Acho que já estávamos fora deste muquifo no sábado em que, a pedido de nosso sócio Duda, cujo verdadeiro nome fico devendo, atravessei a noite colocando umas fitas e uns discos de música sertaneja para rodar, quando, mesmo em meio à fumaça das frituras, tive o prazer de reservar uma mesa para uma convidada muito especial: minha mãe.
Nossa quarta parada foi perto da terceira, no Glorya Deli Club, outra casa em que Front e eu não teríamos conseguido espaço para o Harry sem a ajuda de nosso empenhado sócio.
Quando nosso projeto chegou ao Glorya, uma casa na qual se realizavam vários tipos de festas, ele já estava rolando no domingo, dia em que os amantes de sons alternativos poderiam ter todas as desculpas para não ir a nossa festa, menos dificuldade de condução, já que a mais bonita das casas em que os “harriers” já haviam aportado funcionava perto de um terminal de ônibus, facilitando a vida não só de quem morava em Osasco e região, mas também de quem morava em São Paulo.
A estreia do projeto nesta casa foi tão boa, que deixou gravada a participação de Front e Duda no “Lunch Break”, um programa da então Nova FM que a cada edição trazia DJs das mais diferentes festas para apresentar algumas das músicas de sua “set list”.
A convidativa casa noturna na Vila Yara deveria ter sido o último endereço do Harry se, depois de meses sem fazermos barulho em nenhum lugar, não tivéssemos sido informados de que havia um bar no Km 18, um bairro afastado do centro de Osasco, cujas portas poderiam ser abertas para nós.
Entretanto, a falta de público nesse novo endereço fez nossa festa acabar mais cedo do que esperávamos, acho que depois de três edições.
Até conhecermos nossa última parada, Front e eu levamos nossos DJs para discotecar no Armageddon, um clube na rua Augusta frequentado por góticos e eletrônicos, e agendamos uma discotecagem no Cais, uma danceteria na praça Roosevelt frequentada pelo mesmo público da casa noturna na Augusta.
Se a festa do dia 28 de agosto de 1992, quando o projeto completou dois anos, era para ser a última, acabou não sendo, porque, na última hora, para a alegria de minha mãe, que queria me ver mesmo era trabalhando, não envolvido com festas, achei melhor esquecer aquela história de projeto e ir dormir, deixando todos me esperando à porta da inesquecível casa noturna da Roosevelt.
A última mesmo foi em 2005, quando tentei voltar com o projeto, desta vez, em uma casa de metaleiros no centro de Osasco, mas, vendo que nosso público já não estava mais, digamos, “smelling like teen spirit”, coloquei de volta na gaveta o projeto que eu e meu amigo Front criamos quando não tínhamos o que fazer.
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