A crise do modelo de negócios do jornalismo tradicional se acirrou com a pandemia de coronavírus. No Brasil, jornais estão demitindo, reduzindo salários e cortando jornadas de trabalho de jornalistas com o argumento de que já estão sentindo os efeitos da crise econômica. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), há registro de cortes de até 70% na remuneração dos profissionais.
“A gente vê com muita preocupação esta situação. A pandemia agrava uma crise que vem afetando os meios de comunicação no Brasil desde 2013, quando começa uma onda de demissões. Como sempre a saída mais fácil é penalizar o trabalhador,” diz Maria José Braga, presidente da Fenaj, ao Knight Center for Journalism in the Americas.
Os cortes não poupam nem os maiores e mais tradicionais jornais do país. Nas últimas semanas, Estadão e O Globo propuseram 25% de redução de jornada e salários de seus jornalistas. A crise dos dois se arrasta há anos, com uma série de demissões em massa para tentar equilibrar as contas. Para justificar os cortes de salários e jornadas, tanto o Estadão como O Globo alegam redução na receita publicitária do meio impresso diante da redução da circulação com a restrição das vendas em bancas.
“Com exceção de assinaturas digitais (…), todos os demais canais estão sofrendo quedas agudas. Principalmente a publicidade, que ainda é a parte mais representativa do faturamento total e a pedra fundamental do nosso resultado”, disse o diretor-geral da Editora Globo, Frederic Kachar, em comunicado interno, como informou o site Brasil 247.
Há pouco menos de um mês, o jornal carioca comemorava o recorde histórico de acessos ao seu site. O que foi alcançado graças à cobertura relevante da pandemia.
A Fenaj monitora os casos em parceria com os sindicatos regionais. Há também propostas de reduções de salários e demissões no Ceará, em Minas Gerais, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Os casos de corte de remuneração são amparados por uma medida provisória editada pelo governo federal. A MP autoriza mudanças no contrato de trabalho para as empresas se adaptarem à crise. O que vale para órgãos da imprensa.
“Ao contrário do que a sociedade pensa, os jornalistas não são bem remunerados. No geral, são mal remunerados, com algumas exceções. Para quem já é mal remunerado, perder salário, mesmo com redução de jornada, é gravíssimo,” enfatiza Maria José Braga.
Outra discussão em curso se refere ao trabalho remoto. Com praticamente 100% dos profissionais trabalhando de casa, os custos operacionais se tornaram ponto de atrito entre jornalistas e empresas.
“Chegaram ao nosso conhecimento reclamações (…) de aumento dos gastos pessoais dos jornalistas com internet, energia elétrica e telefonia. Desta forma, mais uma vez, estamos buscando dialogar com as chefias das empresas para evitar que os problemas dessa natureza se avolumem”, comenta o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Ceará, Rafael Mesquita.
No Rio de Janeiro, numa proposta enviada a seus trabalhadores no dia 24 de abril, a Editora Globo, que é responsável pelos jornais O Globo, Extra e Valor, entre outras publicações, se eximiu de responsabilidade pelos custos do trabalho em casa. Foi o que informou Leo Dias em seu blog no UOL.
“O termo regula que a empresa não teria obrigação de pagar por equipamentos e instalações dos funcionários (incluindo contas de luz, telefone e internet, serviços necessários para manter a rotina da redação funcionando mesmo em casa)”, escreveu o blogueiro do UOL.
“O teletrabalho é vantajoso para a empresa porque ela elimina alguns custos. Há uma redução drástica deste custo operacional. Não pagar esses custos é injusto” afirma ao Knight Center for Journalism in the Americas Márcio Leal, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.
“A demanda aumentou e o desgaste é ainda maior. Você em casa não tem as condições adequadas de trabalho. Condições ergonômicas, por exemplo. Não tenho cadeira apropriada para ficar horas no computador. Fico pulando do sofá da sala, para a rede, para a cama. A coluna vai aguentando na medida do possível,” conta, também ao Knight Center for Journalism in the Americas, Gésio Passos. Ele é repórter da Rádio Nacional e diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal.
Diante do cenário difícil tanto na cobertura da pandemia, como nas relações de trabalho, a Fenaj lançou um campanha. Trata-se da “Jornalistas Salvam Vidas”. A ação visa valorizar a atividade profissional de repórteres e editores. “As consequências dessa precarização em um momento tão crítico podem ser fatais para a saúde pública, para a economia e para a própria democracia. O trabalho dos jornalistas é serviço essencial”, diz o texto publicado no site da Fenaj.
Apesar do momento de crise, a presidente da Fenaj, Maria José Braga, identifica pontos positivos da cobertura da pandemia. Segundo ela, aumentou a procura do público por informações confiáveis, produzidas por jornalistas.
“Se houve alguma positiva provocada pela pandemia, isso foi a retomada da confiança no jornalismo”, garante a presidente da Fenaj. “Havia um movimento de descrédito no jornalismo profissional. E houve uma retomada dos veículos de comunicação, grandes e pequenos, como fonte de informação confiável. Isso é muitíssimo importante e faz com que a gente questiona ainda mais a posição das empresas de cortarem os salários. É o momento de valorizar o jornalismo e o jornalista”, complementa Maria José Braga.
O Knight Center for Journalism in the Americas tentou contatar representantes da Editora Globo e do Grupo Estado. Não obteve, porém, resposta até a publicação.
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