Além de ter sido alvo de uma ameaça judicial, o jornalista Marcel Leite, do veículo independente Mídia Caeté, de Alagoas, teve suas redes sociais e fotos pessoais expostas no Twitter e no Instagram pelo médico Marcos Falcão. No dia 25.ago.2021, o repórter foi vítima de quase 100 comentários hostis e homofóbicos, por ter publicado reportagem mostrando como o profissional da saúde, que se declara influencer, desestimulava a vacinação em seus perfis.
Esse foi apenas um entre vários casos de assédio virtual contra jornalistas e checadores de fatos que a Abraji acompanhou ao longo do ano. Até agosto de 2021, foram 137 alertas de ataques que ocorreram através do meio digital, contra 67 nos oito primeiros meses de 2020, aumento de 104 por cento. O levantamento contabiliza discursos estigmatizantes, restrições na internet e ciberameaças, incluindo os vazamentos de dados pessoais, chamados de doxxing.
Antes de ter fotos com amigos vazadas nas redes, Leite expôs, em matéria veiculada ainda em julho de 2021, como o médico alagoano oferecia nas redes sociais laudos para que pacientes com doenças autoimune “evitassem a vacinação obrigatória”. “Não à obrigação, sim à liberdade”, atestava o post. O jornalista tentou contato com Falcão via o telefone do consultório, deixou recado com a secretária, mas não recebeu retorno.
Mais de um mês depois, o médico voltou aos seus perfis para ameaçar o profissional de imprensa com um processo. “Vai precisar se explicar na justiça. Olha o nível da militância política do jornalista que quer dar aula pra médico (sic)”, escreveu. Na publicação, Falcão anexou imagens pessoais de Leite, assim como marcou as redes sociais dele. Abaixo, marcou cinco advogados que se declaram conservadores.
O post desencadeou uma onda de 79 ataques a Marcel Leite só no Twitter. “Processo no r*** dele!”, fez coro um dos seguidores do médico. No Instagram, as imagens divulgadas de maneira inadvertida por Falcão alcançaram mais de 3 mil curtidas, e também receberam comentários ofensivos contra o jornalista.
Para se proteger, Leite fechou as suas contas nas redes sociais, documentou os insultos que recebera e procurou auxílio judicial para se prevenir caso a retaliação judicial viesse, de fato. Neste período, ele afirma ter perdido um espaço de divulgação de seu trabalho, uma vez que usava as redes com esse fim.
“Fui tranquilizado pelos advogados, que me informaram que não há nada de pejorativo, ofensivo e mentiroso em meu texto. Estava apenas exercendo meu ofício e só compilei as informações que o próprio médico postou em seu Twitter, que é aberto e público”, o jornalista contou à Abraji, em entrevista. Até o momento, as ameaças de processo não se concretizaram.
Assim como as minhas redes sociais são abertas, são as dele. Eu não divulguei nada particular, nada privado. É público
Marcos Falcão
Embora tenha tido imagens e suas contas vazadas em redes sociais, o telefone de contato do jornalista não chegou a ser publicado na internet. “O maior prejuízo foi o emocional. A intimidação, que ele cometeu, além de ter exposto pessoas que não tem nenhuma relação com o caso nos prints publicados”, observa.
Procurado via telefone para contato disponível em sua conta de Twitter para “tratamento imediato”, Marcos Falcão alega que fez nada ilegal. “De acordo com um advogado que consultei, assim como as minhas redes sociais são abertas, são as dele. Eu não divulguei nada particular, nada privado. É público”, justificou.
As redes do médico, onde foram divulgadas as imagens do jornalista, reúnem mais de 350 mil seguidores nas redes sociais — 22,7 mil, no Instagram; 57,4 mil, no Twitter; e 247 mil inscritos no YouTube. No site de vlogs, o profissional publica, sobretudo, vídeos de teor político, afinados com a direita, de acordo com a descrição de seu canal.
Falcão ainda reiterou que “já pagou os honorários de uma advogada”, que não quis identificar, para que ela prossiga com o processo contra o profissional de imprensa. “A publicação [do site Mídia Caeté] diz que eu faço tratamento sem comprovação científica, e isso é falso. Eu posso te enviar alguns terabytes de comprovações científicas”, alegou.
Questionado pela Abraji sobre a conduta do profissional de saúde ao ameaçar judicialmente jornalistas por sua atuação, o Conselho Regional de Medicina de Alagoas (Cremal) declarou “não poder se pronunciar sem a apresentação de denúncia contra o médico”.
O caso de Leite é considerado doxxing — a publicação sem consentimento de informações pessoais na internet —, na avaliação do criador do projeto Privacidade Para Jornalistas no Brasil, Raphael Hernandes. “Pode ser que essas informações já fossem parcialmente públicas e circulassem na internet de alguma forma, mas são agregadas em um lugar só para fácil acesso. Isso potencializa os danos”, explica.
Essa exposição pode acarretar outras represálias como constrangimento, montagens em cima de fotos e ameaças. “Conforme o mundo fica mais digital, os impactos de um ataque on-line aumentam”, alerta Hernandes, que também é repórter e analista de dados da Folha de S.Paulo. “Se roubam meu WhatsApp e aplicam golpes financeiros na minha família, o prejuízo é o mesmo do que seria roubar dinheiro deles na rua”, exemplifica.
Os danos dependem da natureza do ataque. Podem ser calar alguma pessoa ou um veículo por meios técnicos, como nos ataques DDoS ou roubo de contas, em que se perde o acesso para divulgar as informações, cita Hernandes. Ou ainda uma tentativa de descredibilizar, com ataques à reputação ou, novamente, a invasão do perfil para postar sandices. “Sempre há um propósito”, assinala.
De acordo com Hernandes, o impacto psicológico de uma campanha de assédio nas redes é real, no sentido de que afetam a cabeça no mundo físico. “Os potenciais danos à reputação também são”, ele afirma.
Outro caso recente de ataques virtuais e doxxing foi o do jornalista Pedro Nakamura, repudiado pela Abraji. Ele teve seu número celular vazado e conversas expostas por um médico implicado em reportagem publicada pelo Matinal, veículo para o qual trabalha. O crime digital culminou em assédio virtual massivo nas redes sociais.
A matéria de Nakamura revelou que cerca de 50 pacientes com Covid-19 receberam experimentalmente uma droga sem a autorização de órgãos regulatórios, entre eles a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre (HBMPA) sob a autorização do endocrinologista Flávio Cadegiani e do infectologista Ricardo Zimerman.
Após Zimerman acusar o repórter de injúria e assédio em publicações na internet, um comentarista político publicou no Instagram uma foto de Nakamura e afirmou que ele “merecia ser empalado em praça pública na frente de seus filhos”.
Tirando a impossibilidade de tomar um soco na boca ou algo semelhante, não faz muito sentido qualquer distinção entre online ou offline/presencial.
Raphael Hernandes
Em 24 de agosto de 2021, os gestores do grupo Matinal foram informados por seu provedor de hospedagem na internet que o website vinha sendo alvo de “ataques de negação de serviço”, ou DDoS, os quais visam sobrecarregar um servidor para impedir o acesso do público às informações nele contidas. Isto é, criminosos virtuais tentaram derrubar o website do jornal digital. Tempo fora do ar significa prejuízo financeiro para veículos de imprensa.
Raphael Hernandes recorda que descuidos podem implicar não apenas os profissionais de imprensa e seus veículos, mas também a fonte. “Gosto de lembrar o caso do [programador] John McAfee. Em 2012, ele era procurado pela justiça e estava escondido na Guatemala. Dois repórteres foram até ele e publicaram uma foto, mas a imagem continha os dados geográficos — o que é normal em fotos tiradas em celular —, que permitiram a localização de McAfee”, recorda.
O jornalista ainda alerta que os ataques podem ser on-line e off-line ao mesmo tempo. “Tirando a impossibilidade de tomar um soco na boca ou algo semelhante, não faz muito sentido qualquer distinção entre online ou offline/presencial”, avalia.
De acordo com Hernandes, existe pouquíssimo o que se fazer após um ataque, a parte mais importante do processo é a prevenção. “Uma vez que sua fonte está exposta, não há como voltar atrás. Se sua reputação é arranhada por um tweet que não foi você quem publicou, dá para tentar fazer uma contenção de danos depois, mas o estrago está feito”, salienta.
O especialista recomenda a adoção de medidas básicas de segurança, disponíveis neste guia de higiene digital do Privacidade para Jornalistas, como usar autenticação de múltiplos fatores tanto no WhatsApp quanto nas redes sociais, gerenciador de senhas e remover o máximo possível de dados em corretores.
Após uma situação de assédio digital, o profissional deve procurar orientação de gestores, buscar apoio de colegas e de psicólogos, indica o especialista. Já os ataques DDoS devem passar pelo departamento de TI, porque a solução é mais técnica, para barrar as ofensivas.
Ninguém está falando para abolir tudo o que é inseguro, morar num bunker e usar papel alumínio na cabeça”
Raphael Hernandes
Caso o ataque já tenha se efetivado, a Privacidade para Jornalistas no Brasil produziu um guia para ajudar na recuperação de contas roubadas. A Abraji e o Observatório de Liberdade de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) lançaram também esta “Cartilha sobre medidas legais para a proteção de jornalistas contra ameaças e assédio online“.
Os casos de assédio online que necessitarem de orientação jurídica podem ser acolhidos pelo convênio firmado entre a Abraji e o Conselho Federal da OAB. Profissionais de imprensa podem ainda pleitear assistência jurídica no Programa de Proteção Legal para Jornalistas.
Segundo Hernandes, quando o assunto é proteção virtual, as medidas ajudam a proteger não só o jornalista, mas pessoas em volta, em especial colegas e fontes. “Ninguém está falando para abolir tudo o que é inseguro, morar num bunker e usar papel alumínio na cabeça”, sublinha.
*Reportagem publicada originalmente pela Abraji
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