Analisando mais de vinte notícias publicadas nos últimos meses em veículos de comunicação brasileiros, a 5ª edição do Minimanual de Jornalismo Humanizado, organizada pela Think Olga, avalia como a cidadania de pessoas LGBT* é tratada na mídia e dá dicas aos jornalistas de como melhorar sua cobertura quando lida com as temáticas de sexualidade e gênero.
Dividido em cinco capítulos, o Minimanual, além de apresentar conceitos básicos do contexto LGBT* (como os significados de orientação sexual e identidade de gênero), dá destaque à cobertura da imprensa sobre a bissexualidade, a população trans* e a afetividade lésbica. Ao fim do livro, ainda há materiais de consulta e um glossário.
“É como se [o Minimanual] fosse um guia mesmo. A natureza dele é falar com gente que a gente nem imagina que está lendo”, diz a jornalista Nana Soares, que preparou o conteúdo desta edição. “É uma iniciativa importante, dada a cobertura jornalística que a gente tem do tema e o modo como as pessoas LGBT* são tratadas. Não é porque o jornalismo está falando do assunto, que ele está sendo responsável.”
Uma das primeiras orientações que o Minimanual dá, por exemplo, diz respeito à nomenclatura das Paradas LGBT* (ou Paradas do Orgulho LGBT*), comumente chamadas de “Paradas Gay”. Embora o termo “gay” ainda seja usado, no senso comum, para englobar todos os grupos da sigla, é importante que a imprensa não reforce a invisibilização das demais identidades, como a lésbica, a bissexual e a trans* (transexuais, transgêneros e travestis).
Essa invisibilização se repete quando a imprensa noticia casos de violência por motivação LGBTfóbica. Sempre que se fala desses episódios, diz Nana, o ideal é que o jornalismo busque apontar os responsáveis e empatizar com as vítimas, e não justifique o crime. Um exemplo acertado, segundo o Minimanual, foi o título “Pai tenta estupro corretivo em filha bissexual de 14 anos”, que chamou a atenção para a raiz do crime. Faltou apenas colocar a expressão “estupro corretivo” entre aspas, pois sexualidade nenhuma (principalmente das mulheres lésbicas e bissexuais, as principais vítimas desse tipo de crime) deve ser “corrigida”, segundo o texto.
O Minimanual dá atenção especial às questões da população trans*, que, diferente dos outros grupos (gays, lésbicas e bissexuais), enfrentam batalhas diárias por causa de sua identidade de gênero. Vale lembrar: transexuais são pessoas que não se identificam com o gênero atribuído a elas no momento em que nasceram. Segundo o coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, Bernardo Mota, entrevistado por Nana, algumas das principais demandas do grupo são a despatologização de sua identidade, a correção do nome civil e o fim da matança contra a população. Já na imprensa, os maiores problemas que o Minimanual aponta são os equívocos na hora de identificar os personagens (seja o nome ou o gênero) e a perpetuação do estereótipo que associa pessoas trans* à marginalidade. “A identidade trans* é totalmente evidenciada quando essa população é autora de um crime, embora isso não aconteça quando ela é vítima de um crime”, conta Nana. Dois exemplos graves foram a chamada “Traveco mata amiga com caco de espelho” e o título “Travesti conta como é a vida nas ruas em SP” (como se “travesti” e “prostituta” fossem sinônimos).
Um erro recorrente da imprensa ao tratar de personagens travestis é o de ainda chamá-las pelo pronome masculino ou ainda pelo termo “traveco”, de modo pejorativo e desumanizador. Nana diz que, em todas as situações em que se falar sobre alguém trans*, seja para saber que nome ou que pronome usar para fazer referência à pessoa, o ideal é que o repórter pergunte à própria fonte como ela deve ser tratada.
Também foram encontradas nas notícias outras expressões problemáticas, como o termo “sapatão” para se referir a uma mulher lésbica, o verbo “admitir” (que implica culpa) em vez de “assumir” para se falar da revelação de alguém de sua sexualidade e outras palavras que associam pessoas e manifestações LGBT* a estereótipos nocivos.
“Esse é um tema novo, então ninguém é obrigado a saber como falar do assunto. Mas você é obrigado a perguntar, ainda mais quando é jornalista. Você tem que tirar as dúvidas com sua fonte e transmitir a informação do jeito certo”, pontua Nana.
“Outra coisa importante é inserir personagens LGBT* em pautas que não tratam do tema diretamente. Todo LGBT* estuda, paga conta de água, de luz… Se você tá fazendo uma pauta sobre compra de imóveis e mostra a casa de uma família heterossexual, por que não vai mostrar a de uma família LGBT*? Essas pessoas não podem ser ignoradas. Quando a gente finge que elas não existem, ou que a vida e a existência delas não são normais, a gente abre as portas para a violência.”
O Minimanual de Jornalismo Humanizado sobre a cidadania de pessoas LGBT* é o último de uma série de cinco edições que também trata de violência contra a mulher, pessoas com deficiência, racismo e estereótipos nocivos. Em todos os livros, a Olga avalia erros e acertos da imprensa e dá dicas aos jornalistas de como melhorar sua cobertura, com base na consulta a membros de organizações que representam grupos minorizados.
Para a jornalista e gerente de conteúdo e comunidades da Think Olga, Cláudia Fusco, o propósito dos Minimanuais é indicar à imprensa caminhos “que não ferem e sim incluem tantas parcelas da população” na hora da cobertura. “Entendemos que os meios de comunicação são veículos poderosos para a perpetuação de estereótipos nocivos e preconceitos. Mas, da mesma forma que a comunicação veicula esse tipo de mensagem, ela também tem o poder de transformá-la”, diz.
Cláudia chama a atenção para o fato de que os repórteres parecem mais conscientes e preocupados hoje em dia, pelo que percebeu durante sua participação no 12º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, que terminou no início deste mês. Ao mesmo tempo, ela conta que, muitos jornalistas tiveram dúvidas em relação à aplicação dos conceitos apresentados em redações mais fechadas ao assunto..
“Nosso maior indicador de que os Minimanuais são relevantes é a reação das redações, que os adotam, e das pessoas que individualmente indicam para amigos”, diz. “Naturalmente, o trabalho está longe de terminar, mas ficamos satisfeitas com o resultado e com a possibilidade de convidar diferentes vozes e vivências para apontar esses equívocos dos meios de comunicação.”
Criada em abril de 2013, a Think Olga é uma ONG feminista empenhada em difundir o empoderamento feminino por meio da informação. Entre seus principais projetos, estão as campanhas Chega de Fiu-Fiu e #PrimeiroAssédio e a iniciativa Entreviste uma mulher, uma lista com os contatos de mulheres de diferentes áreas do conhecimento que podem ser fontes em matérias jornalísticas. Em ocasião de seu quarto aniversário, a Olga está promovendo, uma campanha de financiamento coletivo para produzir ainda mais conteúdo.
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