Ouviram cantar o galo e… – por Marli Gonçalves

Procuremos saber mais antes de ouvir o galo cantar não se sabe nem onde.

Nunca uma expressão pode ser aplicada tão seguidamente quanto agora, com o incremento e popularização das redes sociais, que parecem exercer uma espécie de atração, de cegueira, de hipnose. Um inconsciente coletivo muito esquisito se levanta, arrebatando até gente que considerávamos impermeável.

Lembra aqueles filmes tipo Infectados, Zumbis, Contaminação, Dominados, Epidemia, Invasores, Vírus.  Alguma coisa cai na água, ou se espalha pelo ar e os menos resistentes são atingidos e mal conseguem se aperceber do ocorrido. Ultimamente aparece na forma de vídeos e textos com caracteres e características morais. Acabam, ao contrário, puxando mais gente até que um herói apareça, muitas vezes na pele de uma criança. Nos roteiros, ela sempre tem o coração puro e pode combater o Mal.

Se uma criança dessas pudesse ver ou ler o que os adultos fazem e falam em seu nome ficaria horrorizada. Eles, os adultos, ainda precisam de ensinamento de coisas inacreditáveis. Como a propaganda do sabão em pó que mostra crianças felizes brincando, se sujando, sem problemas, para dizer que é o que precisam, que o produto lavará suas roupas. Como a propaganda do sabonete bactericida que traz imagens dos pequeninos com as patinhas na areia em contato com germes e bactérias e que prometem limpar quando estes chegarem em casa para o banho.

Há muito não lia tantos despropósitos como esses dias nos comentários de gente horrorizada com uma performance ocorrida no Museu de Arte Moderna, MAM, de São Paulo, e que já tinha sido feita em inúmeros outros lugares. Baseado na obra da consagrada Ligia Clark, o artista fluminense Wagner Schwartz fica nu diante de quem se propôs a assistir e conclama que sua imobilidade seja modificada pelos presentes.

Só para repetir: o trabalho foi apresentado dentro de um Museu, com uma placa na porta alertando sobre a nudez do artista e sobre a responsabilidade dos espectadores. Não foi na esquina de uma rua. Não foi dentro de um ônibus. Não foi em cima de um palco ao ar livre. Ah, também não tinha ninguém armado obrigando pessoas a ver, nem se pagava nada para quem lá estivesse.

Aí apareceu uma mãe levando sua filha, a criança pura, e nada mais aconteceria se dentro da sala não estivesse também uma mente sórdida.  Infelizmente, como espalhados andam os seres do mal influenciados pela rasteira política nacional, essa mente viu ali, não arte (que pode ou não ser apreciada, claro), mas pedofilia. A criança – repito – com a mãe, tocou no corpo do artista e a gravação espalhada pelo tal MBL foi suficiente para criar um pandemônio.

O sentido das palavras virou pó. E os dicionários estão abolidos da cultura? Pedofilia: perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças. Prática efetiva de atos sexuais com crianças (p.ex., estimulação genital, carícias sensuais, coito, etc.). Nada disso estava no Museu.

Fui atrás do Código Penal e do Estatuto da Criança e Adolescente que tanto os detratores bradaram. Lá é bem clara a proteção da criança. Por exemplo, o artigo 241-E., que encontrei analisado por um especialista: “Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais”. E continua: “O objetivo foi evidentemente não criminalizar as fotos, imagens e vídeos familiares, pois é muito comum que pais registrem fotos e vídeos de seus filhos, muitas das vezes despidos; todavia, sem qualquer fim sexual, libidinoso ou erótico”, conclui, entre outros exemplos.  Adulto não pode tocar na criança. Criança pode tocar em adulto.

Cada um pensa o que quer, mas desde que pense com sua própria cabeça e não a de uma organização retrógrada que traz os fatos digeridos com a bílis raivosa deles. E em prol de causas que precisam ser severamente observadas, de censura, de obscurantismo, que vêm se repetindo com frequência assustadora.

A nudez é pura. No mundo da arte é comum, bela. Na frente do espelho apresenta você a você próprio. Ela não tem disfarce, classe social, não encobre.

Creio que devemos e podemos parar um pouco e pensar antes de vociferar sobre verdades mutáveis. Será que estamos mesmo defendendo as crianças?

Procuremos saber mais antes de ouvir o galo cantar não se sabe nem onde. Eles – os que pedem censura – cantam de galo e tentam determinar o que podemos ou não ver para tirar as nossas próprias conclusões.

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Marli Gonçalves

Jornalista formada pela FAAP, em 1979. Diretora da Brickmann&Associados Comunicação, B&A. Tem 40 anos de atuação na profissão, com passagens por vários veículos, entre eles Jornal da Tarde, Rádio Eldorado e revista Veja. Na B&A, além de assessoria de imprensa e consultoria de comunicação, especializou-se em gerenciamento de crises, ao lado de Carlos Brickmann, com quem trabalha desde 1996. Também é editora do Chumbo Gordo, site de informações da B&A. Mantém, ainda, o blog particular Marli Gonçalves (http://marligo.wordpress.com). Desde 2008, escreve semanalmente artigos e crônicas para inúmeros jornais e sites de todo o país sobre comportamento, feminismo, liberdade e imprensa. Entre suas atividades na área de consultoria, comunicação empresarial e relações públicas foi de 1994 a 1996 gerente de imprensa da multinacional AAB, Hill and Knowlton do Brasil (Grupo Standard, Ogilvy & Mather). Participou de várias publicações e veículos, entre eles, Singular & Plural, Revista Especial, Gallery Around (com Antonio Bivar), Jornal da Feira, Novidades Fotóptica, A-Z, Vogue. Na área política, foi assessora de Almino Affonso, quando vice-governador de São Paulo, e trabalhou em várias campanhas, entre elas, de Fernando Gabeira e Roberto Tripoli.

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