Ángel Gahona transmitia, via Facebook live, um confronto entre a tropa de choque e manifestantes em Bluefields, na Nicarágua, quando foi baleado e morto.
Apenas quatro dias antes, em 18 de abril de 2018, protestos estouraram em todo o país centro-americano contra as reformas previdenciárias propostas pelo regime do presidente Daniel Ortega.
O caso de Gahona pode ter sido único porque sua morte foi transmitida ao vivo. No entanto, ele foi apenas um entre muitos jornalistas vitimados enquanto cobria protestos de rua em toda a América Latina nos últimos anos.
O grande aumento das manifestações, que às vezes se tornam violentas, exige garantias do Estado, mas também preparação de jornalistas latino-americanos que se encontram no meio dos confrontos. Quer seja cobrindo uma manifestação contra a corrupção na política, aumento da passagem de ônibus ou extração ilegal de madeira, o preparo para esse tipo de pauta pode envolver não apenas pesquisa sobre as pessoas e as questões envolvidas, mas também sobre como se proteger de uma potencial violência.
“[A preparação] possibilita que alguém se prepare mentalmente e se imagine em cenários possíveis”, disse Alejandra González, consultora da Artigo 19 do México para atenção às vítimas de graves violações dos direitos humanos, à LatAm Journalism Review (LJR). “Vejo impactos piores naqueles que não estão preparados, nos que não se imaginam em um determinado contexto, nos que não sabem o que esperar em oposição àqueles que têm uma noção, que posicionam seu trabalho em um cenário de conflito.”
“Globalmente, há um uso cada vez maior do protesto como forma de participação política”, disse V. Ximena Velasco Guachalla, professora assistente do Departamento de Governo da Universidade de Essex, que se especializou em estudar protestos, à LJR. “Cidadãos em todo o mundo estão usando o protesto não apenas com mais frequência, mas também usando essa forma de engajamento político para fazer mais e variadas demandas aos governos”.
Os contextos político, econômico e social de cada país configuram as demandas de protesto, segundo a professora.
“A onda de protestos [na América Latina e Caribe], que para vários países começou em 2019, é motivada por vários fatores, incluindo corrupção, aumento de impostos, escassez de alimentos, violações de direitos humanos e eleições, entre outras demandas”, disse Velasco Guachalla. “Embora as motivações que geram protestos tenham variado, um denominador comum em toda a região foi a rejeição da repressão governamental assim que as manifestações começaram.”
Velasco Guachalla acrescentou que, por mais que esses protestos tenham acontecido antes da pandemia, a COVID-19 “expôs as deficiências dos governos da região em termos de prestação de serviços públicos em tempos de crise”. Isso levou a novas manifestações.
Em uma região “conhecida pela mobilização social”, como destaca a professora, a recente onda de protestos faz parte de uma longa história. Mas em alguns países, eles são novos.
“Por um lado, os protestos na Bolívia, Argentina, Nicarágua e Peru fazem parte de um padrão de mobilização social com rica história nesses países”, disse ela. “Por outro lado, a Colômbia e o Chile não são caracterizados por mobilizações de massa, e os acontecimentos recentes nesses países oferecem oportunidades de aprendizagem para movimentos sociais antigos e emergentes.”
Ao menos 11 jornalistas morreram durante protestos na América Latina e no Caribe nos últimos 29 anos, segundo dados do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). Na maioria dos casos, os agressores suspeitos são membros das forças de segurança ou atores governamentais.
Encontrar informações confiáveis sobre a situação das investigações judiciais sobre os assassinatos de jornalistas durante os protestos é uma tarefa difícil. No entanto, dos 11 casos, a pesquisa da LJR mostrou que apenas dois resultaram em condenações que foram mantidas. Além disso, no caso do assassinato de Ángel Gahona, no sudeste da Nicarágua, o julgamento foi criticado por muitos, e os adolescentes condenados receberam anistia depois.
Além do número de mortos, estão, provavelmente, centenas de jornalistas atacados, feridos, ameaçados e hostilizados durante a cobertura de protestos na região.
Em um relatório de 2020, a UNESCO encontrou 125 casos de ataques ou prisões de jornalistas durante protestos em 65 países de 2015 a 2020. O relatório registrou um pico global nesses números em 2019.
Jornalistas podem enfrentar ataques tanto de manifestantes quanto de forças de segurança”
“A noção de liberdade de expressão está sob cerco em diferentes nações ao redor do mundo, principalmente por governos que não estão reconhecendo o direito das pessoas de protestar pacificamente e o direito dos jornalistas de estarem presentes para cobrir esses protestos”, disse Frank Smyth, autor do relatório e especialista em segurança jornalística global, à LJR.
Ataques a jornalistas que cobriam protestos incluíram assédio, espancamento, intimidação, prisões, sequestros, detenções, ferimentos por munição letal e não letal, danos a equipamentos e muito mais, segundo a UNESCO.
Além disso, a maioria dos ataques em todo o mundo veio da polícia e das forças de segurança, acrescentou. Não há dados confiáveis em escala regional, mas jornalistas podem enfrentar ataques tanto de manifestantes quanto de forças de segurança.
Nos casos em que a violência vem do Estado, Smyth disse que os ataques a jornalistas na América Latina ocorrem em regimes de diferentes ideologias políticas.
“É o uso excessivo da força como forma de controlar a dissidência, tentando suprimir a dissidência e, em seguida, tentando suprimir os mensageiros que estão cobrindo esses protestos”, disse ele.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), fizeram declarações sobre a responsabilidade do Estado de proteger os jornalistas que cobrem protestos como parte da garantia da liberdade de expressão. Também expressaram a obrigação dos Estados de investigar e punir as violações que ocorram durante a cobertura dos protestos.
“Deve-se ter especialmente em mente que é função dos jornalistas, equipes de filmagem, fotojornalistas e trabalhadores da imprensa que cobrem protestos coletar e divulgar informações sobre o que acontece nas manifestações e atos, incluindo as ações das forças de segurança; a liberdade de expressão protege o direito de registrar e divulgar qualquer incidente”, diz um relatório de 2019 do Relator Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH.
“Jornalistas não devem ser detidos por seu trabalho, nem assediados ou atacados por policiais”, continua. “Ao contrário, o Estado tem o dever de protegê-los quando forem vítimas de atos de violência de terceiros. Seus equipamentos e materiais não podem ser retidos, confiscados ou destruídos.”
O Relator Especial também diz que as autoridades devem condenar os ataques contra trabalhadores da imprensa e encorajar a investigação e o processo por parte das autoridades.
No âmbito dessas garantias, estão o dever de prevenção da violência contra os jornalistas que estão reportando.
“Embora o Estado deva, em geral, evitar usar a força em manifestações públicas, ele deve formular políticas específicas para prevenir, investigar e punir a violência contra jornalistas e trabalhadores da imprensa” e outros por causa de seu papel “na prevenção, monitoramento e fiscalização da ação do Estado”, afirma.
A Corte IDH chegou a estabelecer jurisprudência para os Estados da região. Em uma decisão de 2012, determinou que a Colômbia havia violado, entre outros, o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos –relacionado à liberdade de expressão– depois que membros do Exército do país atacaram e ameaçaram um jornalista que cobria uma manifestação contra o governo.
A decisão da Corte no caso Vélez Restrepo vs. Colômbia é um marco porque apresenta as garantias que o trabalho jornalístico deve ter durante a cobertura dos protestos, bem como o dever dos Estados de protegê-los.
“A sentença estabelece várias abordagens que são relevantes. A primeira é que a atenção do Estado aos protestos é um assunto de interesse público e, portanto, deve haver garantias para que a imprensa possa cobrir esses eventos de protesto”, disse à LJR Pedro Vaca, Relator Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH. “A segunda é que, no âmbito dessas garantias, estão o dever de prevenção da violência contra os jornalistas que estão reportando, a proteção dos jornalistas que possam ser afetados e a investigação e punição no caso de ataques contra a imprensa durante a cobertura.”
Os Estados estão obrigados a que, se os jornalistas denunciam ataques contra eles, o fato de denunciar não implique violência ou riscos adicionais”.
Segundo Vaca, como no caso de Richard Vélez não houve apenas agressão durante a cobertura dos protestos em retaliação pelo registro dos atos repressivos do Exército contra os manifestantes, mas também outra série de violências (incluindo ameaças), na busca por Justiça para Vélez, a Corte também pôde estabelecer protocolos nesta área.
“A partir da segunda parte do caso Richard Vélez, os Estados estão obrigados a que, se os jornalistas denunciam ataques contra eles, o fato de denunciar não implique violência ou riscos adicionais. E isso sem dúvida marca um precedente muito importante para as garantias da liberdade de expressão na região”, acrescentou Vaca.
Da mesma forma, como parte das medidas de reparação e garantia de que não se repetirá, a Corte determinou que a Colômbia deveria iniciar a capacitação de membros das Forças Armadas sobre o direito à liberdade de expressão, a fim de torná-los mais conscientes do trabalho dos meios de comunicação e jornalistas, e do seu dever de proteger esse direito.
Embora essa decisão da Corte diga respeito ao Estado colombiano, a verdade é que suas sentenças em geral se convertem em normas interamericanas que outros Estados da região também são obrigados a cumprir.
Em parte treinamento, mas também é deixar claro que o direito de protestar está garantido, assim como o direito de cobrir esses protestos”
“As sentenças da Corte Interamericana também têm a qualidade de se tornarem um referencial e um padrão interamericano. E quando falamos de violência contra jornalistas no âmbito da cobertura de protestos, vemos que é um desafio que vários Estados da região precisam enfrentar. É especialmente desejável que implantem mecanismos de prevenção. Forças de segurança devem ser treinadas sobre o escopo, as características e a importância do trabalho jornalístico durante coberturas para que possam conhecer melhor o escopo operacional”, disse o relator. “E, sobretudo, diria que as forças de segurança, longe de serem agressoras da imprensa, são chamadas a ser fiadoras da cobertura jornalística”.
Smyth também enfatiza a importância do treinamento das forças de segurança.
“A coisa mais importante que o Estado pode fazer é [dar às forças de segurança] treinamento adequado, orientação e parâmetros para que não possam usar força excessiva contra a imprensa, e para que respeitem o fato de que a imprensa tem o direito de estar presente para cobrir as manifestações”. Disse Smyth. “É em parte treinamento, mas também é deixar claro que o direito de protestar está garantido, assim como o direito de cobrir esses protestos.”
“E precisamos da liderança dos governos de todo o continente para intensificar e afirmar essas normas e direitos de liberdade de expressão”, acrescentou Smyth, que também é autor do Guia de Segurança do Jornalista do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ).
Apesar dessas obrigações por parte do Estado, e sem isentá-lo de responsabilidades, os especialistas em segurança destacam que é necessário que os meios de comunicação e os jornalistas tomem medidas de proteção antes de irem para as ruas.
Segundo especialistas consultados pela LJR, é importante que os jornalistas recebam proteção física e treinamento de reação para enfrentar esses momentos, mas também apoio psicológico.
De acordo com Jeff Belzil, diretor de segurança da International Women’s Media Foundation (IWMF), que trabalhou com jornalistas e veículos de comunicação na América Latina e no Caribe, parece que a é experiência que leva jornalistas a mudarem atitudes e comportamentos. E por isso que os jornalistas só chegam aos protestos mais preparados depois de haver um “trauma”.
“Nós, humanos, reagimos com as situações. É como uma criança que vai tocar no fogão e vai tocar até queimar. E então, quando queima, ela descobre que tocar no fogão com as mãos não é a melhor ideia do mundo”, disse Belzil à LJR. “E é o mesmo com o jornalismo, quando uma pessoa não sofreu [uma agressão] em um evento, durante um protesto, ou não viveu nada de concreto, ela não vai se preparar. Aqueles que sofreram ou tiveram traumas, que sofreram em um evento, durante um protesto, da próxima vez eles pensam ‘eu nunca vou me encontrar nesta situação sem estar preparado’.”
Os primeiros socorros psicológicos são a pedra angular para gerar uma mudança de cultura e sistemas de apoio mais eficazes para jornalistas”.
Jornalistas que se preparam para cobrir protestos e manifestações podem ser treinados com antecedência sobre como fugir, sobre ambiente hostil e primeiros socorros. Eles também devem aprender sobre quais tipos de equipamentos de proteção são úteis e quais podem ser potencialmente prejudiciais. Também existem medidas no meio digital, como proteger seus dispositivos e criar uma rede de comunicação em caso de emergência.
A segurança física e a proteção não são a única preocupação dos jornalistas que vão às ruas. Um aspecto frequentemente esquecido de preparação e cuidado após o fato envolve o que está acontecendo nas cabeças dos jornalistas.
Luisa Ortiz Pérez, diretora executiva e cofundadora da Vita-Activa.org, criou uma linha de apoio que oferece primeiros socorros psicológicos a jornalistas e ativistas latino-americanos, especialmente mulheres ou membros da comunidade LGBTQI+. Ela disse à LJR que, em média, sua equipe recebe ligações diárias de jornalistas que cobrem protestos ou distúrbios sociais e civis.
“Os primeiros socorros psicológicos são a pedra angular para gerar uma mudança de cultura e sistemas de apoio mais eficazes para jornalistas e profissionais da mídia”, disse ela. “Desestigmatizar conversas sobre saúde mental, normalizar processos em que pedimos ajuda, integrar práticas de bem-estar, empatia, antirracistas e conscientes de gênero em nossas redações fornece aos jornalistas as habilidades de resiliência necessárias para trabalhar no ambiente em constante mudança de hoje.”
Eu gostaria de ver mais isso: a imprensa falando sobre os riscos associados à pauta”.
As responsabilidades da imprensa e dos editores também são destacadas pelos especialistas. Para Belzil, por exemplo, existem várias medidas que um meio de comunicação pode tomar, como dar aos jornalistas tempo e recursos para treinamento, entrega de equipamentos de proteção individual e elaboração de plano de evacuação e segurança, entre outras providências.
Em particular, Belzil destaca a necessidade dos jornalistas saberem que não há problema em pedir ajuda e que não devem correr riscos desnecessários.
“Gostaria que os editores conversassem sobre segurança com os jornalistas. Gostaria que conversassem sobre os limites, que se as coisas ficarem feias, você não deveria ter nenhum problema em sair do lugar”, disse Belzil. “Eu gostaria de ver mais isso: a imprensa falando sobre os riscos associados à pauta e tendo uma conversa para dizer ‘ei, eu não quero que você se coloque em perigo ou se machuque’ ou ‘nada vai acontecer se você sair ou pedir ajuda.”
Para Belzil, esse tipo de conversa é especialmente importante para mulheres jornalistas que, por conta da “questão do machismo” que as afeta em diferentes cenários, se colocam em maior risco.
Nos próximos artigos desta série, a LJR vai abordar o problema da violência contra jornalistas que cobrem protestos e manifestações na região com mais detalhe e com a observação de estudos de caso específicos. Em seguida, daremos dicas e recomendações de especialistas em treinamento para usar quando os jornalistas vão a campo.
*Silvia Higuera e Júlio Lubianco contribuíram para este artigo.
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