Sem que a maioria desse crédito ou suspeitasse, a pós-verdade – adjetivo cunhado pelos Dicionários Oxford para conceituar as circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos importância do que crenças pessoais -, surpreendeu o mundo, em 2016, pelos efeitos de grandes proporções que provou ser capaz de produzir, materializada sobretudo com a eleição do desacreditado Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. A responsabilização recaiu ligeiramente sobre Mark Zuckerberg, por ser o criador de um ambiente digital, onde prosperou a banalização de notícias falsas, o fio condutor que deu dimensão real a essa “novidade”. Considerando que a pós-verdade é catalisada por conteúdos irreais, no mínimo incompletos ou tendenciosos, podemos questionar se não apenas as redes sociais, mas a cobertura noticiosa da imprensa não tenha por longa data se prestado ao mesmo papel.
Se o filósofo Jürgen Habermas não se equivocou, estivemos expostos à pós-verdade, espantosamente óbvia, sem que nos apercebêssemos. Com outros termos, ele explicou que “os meios de comunicação alteram a percepção e os sentidos das pessoas, na medida em que um outro elemento tende a ser destacado em prejuízo de outro”. Assim, a mídia tradicional teria sido tão adepta da adulteração da verdade quanto as páginas de notícias falsas no Facebook, só que de maneira muito mais velada.
Exemplos não faltam nos dois campos. Quem acompanhou de perto a campanha presidencial nos Estados Unidos, sabe de mentiras que viralizaram, como a de que o Papa Francisco teria declarado apoio a Donald Trump, logo ele a quem o pontífice teria certa vez se referido como não-cristão por conta de sua posição sobre os imigrantes. Num mundo, onde as pessoas leem pouco e preferem se convencer por argumentos reducionistas, que circulam fácil e rápido nas mídias sociais, o Facebook, desprovido de mecanismos de checagem de fatos, tornou-se um santuário profícuo e lucrativo para essa indústria de mentiras, produzidas aos montes por adolescentes na Macedônia ou na garagem de alguma casa em Ohio (aqui no Brasil, numa sala ordinária, em Poços de Caldas) – atrás de anunciantes ou motivados ideologicamente -, e vitaminadas por algoritmos que priorizam posts de conteúdos com mais reações, sejam eles verdadeiros ou não.
Aquinhoado por esse fenômeno com a presidência americana, Donald Trump não decepcionou. Apresentou-se ao mundo como produto genuíno dessa máquina de moer fatos, demonizou a imprensa e relativizou de maneira cretina a verdade. Seus asseclas seguem os passos. Contrariando as evidências, o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, negou de que havia menos gente na posse de Trump do que na de Obama, quatro anos antes. A conselheira do presidente, Kellyanne Conway, tentou justificar com o argumento de que ele havia apenas escolhido “fatos alternativos” para sustentar sua afirmação.
A defesa de fatos alternativos esconde, porém, uma sutileza de caráter filosófico. Trump e sua equipe ao questionarem a noção de verdade reaviva, com provável involuntarismo, a visão do sofista Protágoras, segundo quem qualquer afirmação era relativa a um ponto de vista, a uma sociedade ou ao modo de pensar. Para o filósofo grego, “tal como cada coisa se apresenta para mim, assim ela é para mim, tal como ela se apresenta para você, assim ela é para você.”
Da mesma maneira, a grande imprensa, autointitulada como difusora dos fatos objetivos nessa refrega pela credibilidade, é produtora de meias-verdades ou de verdades provisórias, mas de consequências permanentes. O erro de grandes jornais, como o The New York Times, em afirmar de que havia armas de destruição em massa nas mãos do ditador iraquiano Saddam Hussein, é irrefutável. Nada Bakos, que trabalhou na CIA de 2000 a 2010, em entrevista ao site de notícias The Intercept, confirmou que o serviço de inteligência dos Estados Unidos usou informações falsas, relatórios não revisados, escolheu a dedo os que vinham de fontes que não consideravam confiáveis e repassaram para o presidente. A imprensa endossou a tese, justificando a decisão do governo de George W. Bush em invadir de maneira criminosa o Iraque, com a perda de milhares de vida, sofrimento e destruição que se perpetua.
Fato mais recente, o conceituado jornalista inglês Peter Oborne demitiu-se do The Telegraph por considerar que o periódico fraudou seus leitores ao não noticiar devidamente o escândalo do HSBC na Suíça, preservando em suas reportagens tanto o banco como outras empresas envolvidas. O mesmo se viu, sobre esse caso, na imprensa brasileira, que parece ser uma velha adepta da pós-verdade. Aplica com frequência a teoria do enquadramento na cobertura noticiosa. O relato dos acontecimentos sofre recortes encomendados na sua origem.
O tratamento diferenciado projeta para a audiência maior realidade de uma determinada versão, a fim de interferir nas mudanças sociais e políticas. É o que vemos com a cobertura da reforma da Previdência. Percebe-se um esforço dos meios em fundamentar com argumentos, gráficos, artigos, opiniões de “especialistas” e ameaças de fim de mundo, quando se analisado com lupa, não há devida contextualização do assunto. Sem contextualizar, a informação fica fragmentada à mercê da teoria dos fatos alternativos criada por Trump.
A bem da verdade, para fazer corações e mentes, ambos os lados aproveitam-se da necessidade ontológica que os indivíduos têm em procurar coerência para as suas opiniões e em buscar conforto psicológico introduzindo-lhes sua visão de mundo com conteúdo tendencioso. Nesse cenário, restam poucos para o papel de mocinho. Sem mais o monopólio da difusão de conteúdo em grande escala, os órgãos de imprensa estariam não mais compartilhando a prerrogativa de informar, mas a de induzir a opinião pública. A batalha é feroz, porque não está em jogo apenas o poder de influenciar as pessoas, mas o mercado. Os sites de notícias sensacionalistas e modificadas vêm abocanhando parte considerável dos anúncios publicitários.
O contraditório nessa disputa por quem merece a confiança da opinião pública é que a imprensa, cega em intervir nos planos nacionais com proselitismo e pouca objetividade informacional, cava o abismo com os próprios pés, parafraseando Cartola. A verdade é que o jornalismo vive uma série crise de credibilidade que se traduziu no fechamento, em 2016, de 13 veículos de comunicação – ou deixaram de circular em papel – com a demissão de 500 profissionais, segundo levantamento do Comunique-se.
Ao abandonar sua função em informar com isenção e equilíbrio, os órgãos de imprensa criam um vazio que, por acomodação, começa a ser ocupado por nativos digitais que vem com o discurso de produzir jornalismo profissional conforme os critérios basais da atividade que é cobrir, escrever e divulgar fatos como eles são com análises sem engajamento ideológico ou de mercado. Líderes de opinião e tomadores de decisão não precisam de veículos que noticiam o que eles querem ouvir. Precisam de informações precisas e sérias, sem passionalismo ou tendência.
Não interessa a ninguém a morte do jornalismo. Os comunicadores dependem desse segmento para transmitir as mensagens e valores de seus clientes. Cliente da Rapport, a Unafisco – Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal – sentiu na pele esse dano colateral. Na expectativa frustrada de ver sua pauta sobre parcelamento tributário num grande jornal de São Paulo, a repórter especial explicou sua não publicação dizendo que quanto menos anúncios, menos espaços editoriais. Ou seja, a imprensa tradicional precisa se reinventar para voltar a atrair os anunciantes e não apenas com formatos interessantes, como fez “O Estado de S. Paulo”, que inovou com a divulgação de caderno interativo com conteúdo de realidade virtual. É preciso ir além. É preciso recuar um pouco e voltar às raízes, noticiando fatos objetivos em seu contexto para reflexão da sociedade.
Mais do que nunca, o comunicador precisa contribuir para qualificar o conteúdo noticioso da imprensa oferecendo informações verdadeiras e relevantes. Não é igualmente produtivo gerarmos um combate paralelo para evidenciar a todo custo seus assessorados na mídia, porque ao fazermos isso sem critério responsável, enfraquecemos a imprensa, o que é ruim para a sociedade, que deixa de ser bem informada, para a democracia, que perde uma mídia vigilante, para os comunicadores, que perdem espaços para seus clientes, e para os jornalistas, que perdem seus empregos. Como já advertia outro filósofo grego, Ésquilo, “na guerra, a verdade é a primeira vítima”. E com ela, vai tombando todo o resto.
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Luis Humberto Carrijo. Jornalista formado na Cásper Líbero com pós-graduação em Comunicação Empresarial na USP. Instrutor de cursos de comunicação organizacional, palestrante e articulista. Com passagens nos grupos Folha e Estado, revista Exame e TV Cultura, atua como comunicador há 25 anos. Fundou a agência de comunicação Rapport há 14 anos. Artigo publicado originalmente no site da Aberje.
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