O cenário de degradação que eu via na Boca do Lixo, como acabou ficando conhecida a região do centro da cidade de São Paulo localizada no bairro da Luz por ter sido, entre o fim dos anos 1960 e começo dos anos 1980, reduto do cinema marginal, ainda não me entristecia tanto quanto o que tenho visto hoje ao assistir ao noticiário televisivo quando, entre 1988 e 1990, eu e Clodoaldo Gomes dos Santos, único amigo que eu chamaria para me ajudar a escrever um livro sobre as incongruências da gramática da língua portuguesa, começamos a fazer nosso café esfriar com uma discussão acerca da diferença entre “ter de” e “ter que”.
Por tudo o que até então eu havia aprendido, principalmente no “Dicionário de Questões Vernáculas”, do ortodoxo professor Napoleão Mendes de Almeida, que ainda estava neste mundo, devo ter saído daquela conversa sem convencer meu amigo da diferença de sentido entre a primeira e a segunda expressões, porque ela é tão fina que fica difícil corrigir quem usa uma pela outra, ou as duas ao mesmo tempo, seguindo os gramáticos que dizem que ambas as locuções são equivalentes.
Não, não são, porque, segundo os defensores do uso da locução “ter de”, neste caso, fica subentendida a ideia de OBRIGATORIEDADE (NECESSIDADE, DEVER), explicação de que eu nem precisaria para continuar escrevendo e falando, por exemplo, “Tenho de trabalhar”, já que o conectivo que acompanha verbos transitivos indiretos (“Gosto de trabalhar”) e de locuções verbais (“Preciso [de] trabalhar”) é a preposição “de”, e “ter que”, ALGO POR FAZER, como em “Nada tenho que escrever”, exemplo este em que o pau para toda obra “que” é pronome relativo do antecedente “nada” e objeto direto do verbo no infinitivo.
*Edson de Oliveira. Revisor de textos há mais de 20 anos, corrigindo principalmente legendas de vídeo, transcrição de áudio e textos jornalísticos, é editor dos blogues EFMérides e Blogue da Revisão.
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