A decisão de sair às ruas brasileiras para fotografar as vítimas do novo coronavírus envolve cálculos de risco. Depois de quase cinco meses da maior crise sanitária do país, fotojornalistas e repórteres cinematográficos incorporaram à rotina uma disciplina rígida para evitar contaminação e, ao mesmo tempo, salvaguardar o direito dos pacientes atingidos pela pandemia do novo coronavirus. Um trabalho que mexeu com a ética e a segurança desses profissionais.
A Abraji ouviu cinco jornalistas do Rio de Janeiro, de Manaus e de São Paulo que registraram imagens de hospitais de campanhas, UTIs, agentes desinfectando vias, ruas vazias, aglomerações, manifestações populares, futebol, vidas e mortes. Eles se arriscam em prol da memória jornalística e para revelar a gravidade da doença em lugares de pouca visibilidade.
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O primeiro desafio dos profissionais é a necessidade de avaliar bem uma pauta. “Temos de estar vigilantes o tempo inteiro”, comentou Mauro Pimentel, fotojornalista da Agência France-Presse (AFP). “Estávamos acostumados a ficar em um lugar por três semanas e voltávamos para casa seguros. Agora não, o vírus pode estar no meu pé”, explicou Pimentel, cujo filho nasceu pouco antes da pandemia.
Desde que passou a cobrir a crise sanitária, Pimentel diz que estuda mais biossegurança do que fotografia. “Hoje meus principais equipamentos são os de proteção individual. A câmera se tornou secundária”, acrescenta. O fotojornalista começou a se adaptar às lentes próprias para imagens a longa distância, as teleobjetivas. Por isso, atenta-se sempre às regras de distanciamento físico, mantendo-se a dois metros de quem fotografa, em respeito ao entrevistado.
Antes de sair de casa, o fotógrafo carioca leva três máscaras, uma no rosto e duas extras; óculos de proteção com vedação de ar; uma bomba de 5 litros de álcool em gel, que divide com a equipe; e um macacão de segurança. “Sempre avaliamos o risco e pensamos no equipamento adequado”, explica Pimentel. Comprado na internet depois de muita busca, o macacão foi usado para fotografar o atendimento a pacientes com Covid-19 no Hospital Ernesto Che Guevara em Maricá, no Rio de Janeiro.
Para o jornalista premiado por coberturas de zonas de conflito, fotografar o retorno dos jogos de futebol foi o momento mais aterrorizante da pandemia. “Não tinha controle de tudo. Existiam regras para as pessoas manterem certa distância, mas nem todo mundo respeitava”, recorda.
Além dos protocolos de segurança seguidos pelos profissionais durante a pandemia, a própria fotografia assumiu um papel fundamental para alertar às autoridades sobre o alastramento da doença. Ainda em maio de 2020, quando Manaus era o epicentro dos casos, foi a visão aérea das valas abertas em um cemitério da cidade que proporcionou um retrato marcante e a dimensão da tragédia. A foto do cemitério Parque Tarumã, capturada pelo drone de Michael Dantas, da Agência France Presse, repercutiu no mundo inteiro, com publicações em jornais como o New York Times.
No Amazonas, onde a crise sanitária agora está estável segundo mapa interativo da Folha de S. Paulo, a epidemia deixou quase 80 vítimas a cada 100 mil habitantes. Em maio, na semana mais aguda da infecção no Estado, a Covid-19 matou 461 amazonenses. Alexandro Pereira, cinegrafista da Rede Amazônica, afiliada da Rede Globo, lembra que ficou de plantão dias inteiros nos hospitais de Manaus. “Cobrimos a evolução do vírus com dedicação integral, para dar rosto a cada um dos doentes no pico da pandemia. Não existia pauta com hora marcada.”
Todas as orientações da Organização Mundial da Saúde são seguidas na hora da gravação. “Antes de qualquer entrevista, nossos microfones são higienizados para repassar ao entrevistado e higienizados novamente após a conversa”, diz. Designado para fazer imagens em comunidades indígenas, o repórter cinematográfico se preocupou em fazer testes antes das visitas às aldeias.
Antes de uma das muitas viagens que fez no período, Pereira não se sentiu bem e passou dez dias em casa isolado da família, seguindo recomendações da emissora. Apesar de sempre ter tomado cuidados antes de entrar em casa depois de completar uma pauta, testou positivo para o coronavírus.
Uma segunda via de preocupação dos fotojornalistas é o cuidado na relação com as fontes. Aos 17 anos, Matheus Guimarães já é fotógrafo e cinegrafista do Voz das Comunidades, portal especializado na cobertura da periferia do Rio de Janeiro. “O mais importante é as pessoas verem o que está acontecendo onde moram. A cobertura nas comunidades é bem diferente de cobrir a Zona Sul carioca, e isso se reflete nas imagens”, explica.
Guimarães vem acompanhando as intervenções do governo e as mobilizações comunitárias para mitigar a crise. Para o jovem, o site consegue suprir as eventuais ausências da grande imprensa nessas áreas. “Colaboramos com G1, Jornal da Globo e o RJ1 [telejornal local do Rio]. Fazemos pontes para que eles realizem as matérias”, revela.
Fundadora da Zalika Produções, a documentarista Naná Prudêncio produziu um média-metragem sobre as desigualdades da periferia que a pandemia escancarou. O filme estreará on-line na página do Facebook do Alma Preta, no dia 04.ago.2020.
“Em 30 minutos, entrevistamos pessoas atingidas pela pandemia e que não estão recebendo nenhuma ajuda, nem cesta básica”, afirma Prudêncio. Chamado “Pandemia no Sistema”, o documentário não tem foco na pandemia, mas na vulnerabilidade de certas regiões, retratada por meio das personagens.
Com anos de experiência fotografando áreas de São Paulo como Capão Redondo, Taboão da Serra e Grajaú, a documentarista afirma que tem uma relação diferente com suas fontes. Quando sua pequena equipe preparava as gravações, levava não só o álcool em gel e a máscara. “Levávamos o serviço social junto.”
Com ações em 1.500 comunidades, a Central Única das Favelas (Cufa) facilitou o trabalho de Prudêncio, apresentando personagens e fazendo intermediações. “Mesmo assim, encontramos resistência. As pessoas não querem falar se alguém tem Covid-19, porque têm vergonha. Se equipar para se proteger foi difícil até para nós, porque assustava os moradores”, recorda.
Fotojornalista da Folhapress, Eduardo Anizelli teve o enorme desafio de acompanhar a repórter Patricia Campos Mello em uma pauta sobre os pacientes internados na UTI do hospital Emílio Ribas, referência em São Paulo para os infectados. Para ele, a questão crucial não era a segurança, já que usou uma antecâmara de pressão negativa, que garantia um alto nível de desinfecção do vírus, mas respeitar o direito de imagem em um momento delicado para os internados e suas famílias. “O maior cuidado foi não identificar o rosto.”
Quando as imagens foram ao ar na TV Folha, a edição borrou os rostos das vítimas. O fotojornalista destaca que a pandemia também alterou a relação com as fontes e os procedimentos que geralmente os profissionais tomam antes e depois de fotografar. “Com frequência, o infectado está inconsciente, sem nenhum familiar por perto, e não é possível pedir autorização a alguém”.
Nos casos em que o paciente pede para não ser fotografado, o jornalista respeita o direito individual de quem não quer se expor. “Teve um homem que chegou ao Hospital de Campanha do Pacaembu em estado grave, mas consciente. Pediu para que eu não o identificasse, e a gravação da cena foi feita aceitando esse pedido”, lembra.
Chegando ao Platão Araújo, um hospital para atendimento de Covid-19 em Manaus, Alexandro Pereira, da Rede Amazônica, se deparou com uma senhora em prantos. “Ela havia perdido a filha de 15 anos. Nesse momento, vendo a dor da mãe eu não sabia se apertava o ‘Rec’ ou me afastava. Comecei a fazer uns ‘takes’ de longe. Cheguei a comentar com meu repórter se deveríamos gravar aquela situação. Apesar de tudo, a informação, a notícia, precisa ser repassada. E foi, com autorização da família.”
Foto: Alex Pazuello/ Semcom
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