Nunca fui fã da jornalista Glória Maria, cujo trabalho acompanho desde a segunda metade da década de 1970, muito menos de sua colega Sandra Annenberg, cujo trabalho conheço desde o tempo em que ela era atriz de novelas, mas assisti à edição de 5 de junho de 2020 do ‘Globo Repórter’, sobre racismo, tipo de preconceito com o qual já estou tão familiarizado. Quase chego a acreditar na interpretação bíblica que, entre os séculos 16 e 19, os europeus fizeram para justificar a escravização dos africanos, de que os negros seriam os herdeiros da maldição de Cam, que Noé lançou contra Canaã, filho de seu filho Cam, condenando-o e a seus descendentes à servidão.
Na verdade, a edição à qual assisti foi a reapresentação do programa da GloboNews ‘Em Pauta’ que havia ido ao ar dois dias antes, reunindo só jornalistas negros, já que o programa do dia anterior havia sido criticado por ter debatido o assunto só com jornalistas brancos.
Enquanto Maria Júlia Coutinho, Aline Midlej, Flávia Oliveira, Lilian Ribeiro, Zileide Silva e Heraldo Pereira, que apresentou o programa, falavam sobre suas experiências com o racismo e sobre o assassinato de George Floyd, ocorrido na semana anterior, em minha cabeça, passava um filme com as minhas experiências, a começar pela piada de um amigo perguntando por que preto vai à igreja evangélica.
Não sei por que os alunos da escola em que eu estudava quando era criança colocavam a palavra “macaco”, inclusive em inglês, depois do nome de um xará meu se a cor da pele dele era menos escura do que a do “Fumaça”, como meu primeiro patrão, que se referia a mim com a palavra “tição”, chamava o filho de um de seus fregueses pretos, e a de meu pedreiro José, que na rua em que eu morava em Osasco todos chamavam de “Tiziu”.
Desde criança, tenho tanto medo do fantasma do preconceito contra negros, que, certa vez, correndo feito Lola no centro da mesma Osasco para tentar depositar um dinheiro antes do fim do expediente bancário, rezei para ninguém gritar “pega ladrão”. Mas, por causa de meu sobretudo gótico, não escapei do seguinte comentário de um dos presentes ao velório da avó de uma amiga: “Olha, o padre é preto!”.
Imagino que nenhum dos amigos meus que se dizem antirracistas gostaria de ver ninguém ser maltratado por causa da cor de sua pele, detalhe este que, a meu ver, mais faz as pessoas da raça negra ser marginalizadas, mas dois deles não esconderam para a filha que não queriam que ela namorasse o mulato que ela havia convidado para, digamos, jantar na casa deles, porque, no Brasil, ninguém é racista até ver uma pessoa de sua família se relacionar com alguém de outra raça, principalmente negra, problema que acontece até nas melhores famílias.
Desde 1989, quando já fazia um século que o Brasil havia devolvido a liberdade que os europeus haviam roubado dos negros, abandonando-os à própria sorte, que racismo é crime. E daí? Por causa disso, a vida do negro passou a ter a mesma importância que sempre teve a do branco? Que pessoa de pele escura ou parda passou a ser bem recebida pela família da pessoa branca com a qual ela se relaciona amorosamente, se sentir à vontade em um ambiente 99% ocupado por brancos, receber o mesmo tratamento que as instituições dão aos brancos?
Mas por que o Brasil trataria melhor seus negros do que o resto do mundo os trata, como os Estados Unidos, onde, conforme a jornalista americana Isabel Wilkerson, primeira mulher negra a ganhar um Prêmio Pulitzer de jornalismo, escreve em seu livro “Casta: As Origens de Nosso Mal-Estar”, recém-lançado no Brasil, historicamente, eles foram relegados aos empregos mais sujos, degradantes e menos desejáveis?
Desde o começo de sua história, o Brasil é um país tão racista, que teve até uma Constituição, a de 1934, que estimulava a educação eugênica, cujo principal objetivo era o embranquecimento do povo brasileiro.
Aliás, enquanto eu escrevia este texto, a trabalho, assisti ao monólogo “Traga-me a Cabeça de Lima Barreto!”, que encerra com a seguinte fala do Dr. Renato Kehl, fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo: “Ninguém poderá negar que, no correr dos anos, desaparecerão os negros e os índios de nossas plagas, assim como os produtos resultantes dessa mestiçagem. A nacionalidade embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano.”.
Aos negros e aos povos que já estavam nesta terra antes de ela ser invadida e explorada pelos europeus só nos resta resistir ao genocídio nosso de cada dia.
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