Opinião

Rádio, Gama, Delta, Ômicron

Como administrar uma rádio durante uma pandemia provocada por um vírus transmitido pela boca ou pelo nariz de uma pessoa infectada? Estúdio pressupõe ambiente fechado. A não ser que a emissora seja do estilo “vitrolão” (sem locutores), falar ao microfone nesses “aquários” faz parte da natureza do meio. O que foi preciso fazer para garantir a continuidade de 26 novos programas da grade sem que os períodos mais agudos de transmissibilidade da doença prejudicassem os trabalhos?

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Como prioridade, ter a meta de prezar pela segurança de todos os envolvidos antes de qualquer coisa. Reuniões foram realizadas com o objetivo de traçar estratégias diante de possíveis cenários. Para atividades que não prescindiam a presença, adoção de home office. Redução da circulação de pessoas com rodízio de operadores, apresentadores, produtores, repórteres. Restrição de convidados para entrevistas, com a adoção permanente das chamadas gravações “híbridas” (por telefone). Protocolos seguidos à risca: uso de máscara obrigatório, álcool em gel disponível em todas as dependências, proibição de mais de duas pessoas ao mesmo tempo em ambientes fechados. Nas transmissões esportivas, nas quais mais pessoas são necessárias, narrador e operador num estúdio, comentarista e repórter em outro. O resultado veio com o tempo: nenhuma transmissão comunitária de Covid-19 registrada na emissora.

A missão de uma rádio educativa durante uma pandemia

Em 1922, o mundo ainda se recuperava da Gripe Espanhola. Foi quando os convidados da Exposição Internacional do Rio de Janeiro foram apresentados ao serviço de “rádio-telephone alto-falante”. Na hoje Praça Marechal Âncora (centro da capital fluminense), o discurso do então presidente Epitácio Pessoa e a ópera O Guarani, cuja apresentação acontecia no Theatro Municipal, ecoaram graças a um transmissor de 500 watts instalado no Alto do Corcovado e a 80 aparelhos importados, que permitiram a Niterói, Petrópolis e São Paulo também receberem o sinal.

O rádio não morreu — mas só o dial já não basta — Che Oliveira

A poucos meses do assombro registrado pela imprensa brasileira da época completar cem anos, o rádio vive um renascimento justamente quando uma nova pandemia assusta a humanidade. Dados de uma pesquisa do Kantar Ibope Media revelam: se em 2016 e 2017 o público que buscava conteúdo de rádio na internet era de 3%, em 2020 o índice disparou para 13% em 2021. Afunilando ainda mais os resultados, chegamos ao impressionante índice de 186% quando analisamos o aumento do consumo online de rádio em 2021 em relação a 2019. Se em 2017 apenas 19% dos ouvintes de rádio revelaram possuir algum aplicativo de emissoras em smartphones ou tablets, em 2021 esse quantitativo subiu para 36% — um crescimento de 86% nos últimos cinco anos. Ou seja, o rádio não morreu — mas só o dial já não basta.

O rádio faz parte de minha trajetória profissional antes mesmo de eu me decidir ser jornalista. Nascido e criado na Rocinha, enquanto esperava a hora da escola, era hábito acompanhar a programação radiofônica matutina por meio de um potente Transglobe Philco Ford (sete faixas de ondas curtas, o máximo!) que ficava ligado na cozinha o dia inteiro com minha mãe à beira do fogão. À noite, a diversão era localizar emissoras do mundo todo. Quis o destino que, depois de quase um quarto de século dedicado ao telejornalismo, seria partícipe de uma importante página na história de um veículo que leva o nome do pai da radiodifusão brasileira.

Oitenta e oito anos não são oitenta e oito semanas, mas longevidade não pode ser desculpa para ficar eternamente atrelado a velhos formatos. Para os gestores, é necessário ter em mente de que, em tempos de metaverso, criar modelos multiplataformas e convergentes tanto na hora de planejar o que vai ao ar quanto no momento de transmitir virou questão de sobrevivência. E mesmo quando não se tem grandes recursos financeiros, o foco em meios digitais, redes sociais e produções exclusivamente online deve ser valorizado.

Em pouco mais de um ano, em meio à pandemia, a histórica Rádio Roquette-Pinto do Rio de Janeiro pode dizer que fez o seu dever de casa. Primeiro, reativou o site da emissora, possibilitando o compartilhamento não só da programação ao vivo por meio de link na própria página, mas também do conteúdo transmitido que passava a ficar disponível ao alcance de um clique. O próximo passo foi colocar de vez o pé nas redes e o resultado não demorou a aparecer. No Facebook, houve um aumento de 137,7% no número de pessoas que viram o conteúdo da página da rádio entre o primeiro dia de 2021 e o de 2022. No Instagram, o crescimento no mesmo período foi ainda maior: 816,2%. Faltava o canal do YouTube, que estreou em julho de 2021. Em seis meses, foram 10,3 mil visualizações totais, 975 inscrições, 116 vídeos enviados, 113 transmissões ao vivo — com 36,1% do conteúdo recomendado pela própria plataforma. Isso sem falar na criação de produtos exclusivos para o Spotify por meio de parcerias já presentes no dial.

“O rádio é a escola dos que não têm escola” — Edgar Roquette-Pinto

Porém (ai, porém) fazer uma rádio verdadeiramente pública é resgatar os ideais que nortearam a fundação da Rádio Escola Municipal do Rio de Janeiro, em 1934, numa pequena estação nos fundos do Theatro Municipal — com o apoio do educador Anísio Teixeira, que defendia o ensino público, laico e obrigatório. Ousadia não faltava: pesquisadores relatam que estudantes se inscreviam por carta, recebiam material das lições antes das aulas radiofônicas e recebiam, depois, trabalhos relacionados com os assuntos das aulas. Com a Covid-19, o necessário distanciamento social fez com que as aulas 100% presenciais na rede estadual de ensino, com cerca de 725 mil alunos, fossem retomadas em 25 de outubro de 2021 — menos de um mês antes da primeira etapa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

90% dos aparelhos de telefonia móvel já saem de fábrica com um chip capaz de receber o sinal de FM sem depender de pacotes de dados — Che Oliveira

Novamente, faz-se imperativa a necessidade de acompanhar a tecnologia. Em 2020, a Pesquisa Anual do Centro de Tecnologia de Informação Aplicada (FGVcia) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV) já revelava que tínhamos no país, àquela altura, 424 milhões de dispositivos digitais — leia-se computador, notebook, tablet e smartphone. O mesmo estudo mostrou que são vendidos no Brasil quatro celulares para cada televisão. Junte-se a isso a informação de que cerca de 90% dos aparelhos de telefonia móvel já saem de fábrica com um chip capaz de receber o sinal de FM sem depender de pacotes de dados, usando os fones de ouvido como antena. Ou seja, o rádio, de novo, provando que nunca deixou de ser o meio de informação mais rápido e mais próximo da população, onde quer que se esteja. Entreter e informar sempre – prestar serviços com qualidade e responsabilidade social

Surge o ‘Vem Que Tem Enem’. Em parceria com a Secretaria de Estado de Educação, professores de 13 disciplinas se alternavam se segunda a sexta em dois horários ministrando pílulas pedagógicas com dicas para a prova. Biologia, matemática, química, física, redação, geografia, artes, história, filosofia, sociologia, línguas portuguesa, inglesa e espanhola. Ao todo, 46 episódios resultaram em 374 minutos (ou pouco mais de seis horas) de conteúdo transmitido para todo o estado do Rio. Complementar a tarefa de educar, atingindo o maior número de pessoas possível, fora do ambiente escolar? Só um meio tão democrático como o rádio seria capaz de cumprir tal missão.

Sem máscara e com fôlego para os 100 anos de rádio no Brasil

A pandemia não acabou — os cuidados continuam mesmo com a flexibilização das regras sanitárias pelo país. Muito doloroso possuir o último auditório de rádio em ação e não poder enchê-lo de público durante as poucas apresentações musicais que aconteceram nesse último ano. Shows ao vivo, reativação de núcleos de rádio-novela (geralmente, celeiros de novos autores de dramaturgia), programas especiais… Não faltam projetos para a ocupação plena do espaço. Assim como tirar do papel visitas guiadas a estudantes de instituições públicas de ensino, uma escola de rádio e outra de podcast, o apoio à rádios comunitárias com capacitação…

Nada é mais desafiador do que estar numa rádio que leva o nome de Edgar Roquette-Pinto quando o veículo completa cem anos da primeira transmissão oficial no Brasil. Momento mais do que oportuno para reverenciar a história, comemorar o presente e olhar o futuro. Mesas de debates promovidas pela Rádio Roquette-Pinto estão no planejamento para discutir não só as telecomunicações dentro do contexto atual mas a realidade brasileira do ponto de vista de quem pretende pavimentar o chão dos que ainda estão por vir. Para isso, fundamental contar com as inúmeras parcerias feitas com instituições dos mais variados setores da sociedade — todos com o objetivo de estimular o pensar e fazer reverberar um dos pensamentos pétreos do homem que possibilitou as telecomunicações no país:

“Eu quero tirar a ciência do domínio exclusivista dos sábios para entregá-la ao povo.”

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Por Che Oliveira. Jornalista e atual assessor da presidência da Rádio Roquette-Pinto

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