O processo de recuperação judicial do grupo Abril, um dos maiores grupos editoriais do Brasil, está fazendo com que um jornalista tenha que pagar uma vultosa quantia em um processo relacionado a uma reportagem veiculada em uma publicação da editora.
A praxe no Brasil é que a empresa jornalística arque com os custos de ações judiciais referentes às reportagens que publica, assim como eventuais indenizações, em caso de condenação. No entanto, a recuperação judicial do grupo Abril impede a empresa de pagar uma indenização em um processo que envolve o jornalista André Rizek. Ele teve sua conta bloqueada no dia 19 de julho e está sendo cobrado em R$ 805 mil, segundo informou o jornalista Juca Kfouri em seu blog.
O grupo Abril entrou em recuperação judicial em agosto de 2018 alegando dívidas que, na época, somavam R$ 1,6 bilhão. O recurso foi impetrado pelo grupo Abril junto à Justiça brasileira dias depois de a empresa demitir cerca de 200 funcionários.
A recuperação judicial significa que “a companhia endividada consegue um prazo para continuar operando enquanto negocia com seus credores, sob mediação da Justiça”, explica o G1. As dívidas contraídas antes do pedido de recuperação judicial ficam “congeladas” durante essa negociação. Isso inclui as indenizações a que a editora for condenada a pagar em processos anteriores a agosto de 2018, como é o caso da ação em que a editora e Rizek foram condenados.
O pagamento da indenização, então, recaiu sobre o jornalista. Em novembro de 2018, os advogados de defesa dele e da Abril entraram com um recurso para que fosse suspensa a execução da sentença em relação a Rizek.
Eles argumentaram na petição que, embora a Abril não possa pagar a indenização no momento por estar em recuperação judicial, a ela compete “o pagamento integral da condenação”, conforme estabelece a Convenção Coletiva de Trabalho dos Jornalistas Profissionais. A Convenção determina que, caso o jornalista seja processado por alguma reportagem, “a empresa patrocinará a sua defesa custeando todas as despesas até decisão final transitada em julgada, desde que a matéria objeto do processo tenha sido autorizada pela direção da empresa e não fuja à orientação que esta tenha dado”, cita a petição.
O documento redigido pelos advogados sustenta que tal regra “está a garantir a mais ampla segurança e liberdade para que os profissionais do jornalismo possam desenvolver suas atividades, cumprindo-se, assim, uma vocação democrática” e que, sem ela, “não se praticaria jornalismo no Brasil, eis que os profissionais de imprensa seriam facilmente intimidados por ações milionárias, cujas indenizações pretendidas jamais poderiam custear”.
Ainda em novembro do ano passado, foi concedida liminar que suspendeu a execução da sentença sobre Rizek, conforme noticiou o Consultor Jurídico. No entanto, em maio de 2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negou o recurso e determinou que a indenização fosse cobrada do jornalista, segundo informou o Jota.
A decisão do TJSP argumenta que “a Convenção Coletiva de Trabalho não se aplica ao caso” pois ela “apenas aponta para o pagamento de despesas processuais e não o pagamento de condenação”, além de não ter “o condão de afastar condenações judiciais em favor de pessoas alheias à relação contratual, na medida em que o agravado [o autor da ação] não participa de qualquer das entidades de classe” que firmaram a Convenção, que são o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e o Sindicato das Empresas Proprietárias de Jornais e Revistas de São Paulo.
Além deste processo, Rizek e a editora Abril foram condenados em outra ação judicial, cujo valor da indenização é de R$ 350 mil reais. Esta sentença, porém, ainda não começou a ser executada.
Embora o caso de Rizek esteja na Justiça desde 2003, ele ganhou repercussão no dia 18 de julho após ser noticiado por Juca Kfouri em seu blog. No texto, Kfouri acusa a Abril de ter “abandonado” Rizek e afirma que “há mais de 50 jornalistas da Abril respondendo a processos, todos com fatos anteriores à recuperação judicial”.
“Rizek é o primeiro a ser executado. Outros virão”, escreveu Kfouri, que acrescenta que o jornalista “tem documento oficial da empresa reconhecendo que dívida é dela e não dele – como a Abril já faz publicamente no processo -, embora, na prática, graças à recuperação judicial, Rizek é que esteja sendo cobrado”. “De tudo, resta perguntar: há alguma segurança para assinar uma matéria em revistas da editora Abril?”, questionou Kfouri.
Raphael Maia, advogado e coordenador do Departamento Jurídico do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, disse ao Centro Knight que a decisão do TJSP que impôs a execução da sentença sobre Rizek tem “o impacto de uma bomba atômica” sobre jornalistas no Brasil.
“O jornalista não tem a prerrogativa de suspender o processo [de execução da sentença] por conta da recuperação [judicial] da empresa”, disse Maia. “É uma situação em que a lei [de recuperação judicial] protege a empresa e joga o empregado aos leões.”
Para ele, uma solução possível e imediata para o caso de Rizek seria o proprietário da Abril assumir o pagamento da indenização. “O dono da Abril pode bancar esse pagamento e comprar esse crédito [com a empresa] como pessoa física. É a única forma que eu vejo, porque a Abril de fato, por lei, não pode antecipar esse pagamento. Enquanto ela não paga, o processo contra o jornalista vai seguir o seu turno.”
Maia acrescentou que, por conta deste caso e da recuperação judicial da Abril, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo está negociando com o Sindicato das Empresas Proprietárias de Jornais e Revistas de São Paulo a alteração da próxima Convenção Coletiva de Trabalho para contemplar situações similares.
“Estamos emendando a cláusula para ficar bem claro que, mesmo em caso de condenação, a dívida é da empresa. Também estamos incluindo uma recomendação para que o advogado de defesa do jornalista, que nestes casos é o mesmo que defende a empresa, apresente em nome do jornalista uma impugnação do valor de eventual condenação para que seja limitado à condição específica do jornalista, não da empresa. Porque do contrário a pessoa pede R$ 1 milhão pensando nas possibilidades da empresa, mas condena junto o jornalista”, disse ele.
De acordo com Maia, já houve uma sinalização positiva do sindicato patronal e é provável que a nova Convenção Coletiva de Trabalho, referente ao período de 2019/2020 no Estado de São Paulo, conte com a cláusula atualizada e inclua essa recomendação para eventuais próximos casos.
O Grupo Abril, por sua vez, afirmou ao Centro Knight por meio de comunicado que as empresas do grupo estão submetidas “aos efeitos e limitações impostas pela Lei 11.101/2005, especialmente com relação às obrigações anteriores ao pedido de recuperação judicial”.
“Os efeitos impostos pela legislação que regulamenta a recuperação judicial não são opcionais, e seu cumprimento e observância pelo Grupo Abril devem ser totais”, afirmou o comunicado. O Grupo Abril afirmou também que Rizek “vem sendo representado e defendido nos últimos 16 anos em todos os processos porventura ajuizados contra si, totalmente às expensas do Grupo Abril, de forma diligente e responsável”.
“Os efeitos da recuperação judicial sobre os processos judiciais envolvendo o Sr. André Rizek tornaram o caso complexo e atípico, sendo certo que o Grupo Abril vem estudando possíveis medidas junto ao juízo da recuperação judicial para suspender as cobranças que vem sendo atualmente realizadas contra o jornalista, e continua empenhado em encontrar soluções para o bom desfecho deste caso”, afirmou a empresa.
A companhia também disse que “o eventual direito de reembolso de partes que são devedores conjuntos com o grupo Abril será tratado no plano de recuperação judicial, e deverá ser confirmado por decisão do juízo da recuperação judicial”, o que deve acontecer ao longo de agosto de 2019.
O Centro Knight perguntou à Abril se há outros jornalistas que são corréus com a empresa em processos relacionados a reportagens veiculadas em publicações da editora e que podem se ver na mesma situação de Rizek em um futuro próximo. “A Abril historicamente vence a esmagadora maioria de casos judiciais sobre matérias publicadas, e o desenrolar do processo de recuperação judicial permitirá a solução dos casos pendentes”, respondeu a empresa. O Centro Knight entrou em contato com o jornalista André Rizek, mas ele não quis comentar o caso.
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