Todo manual de redação esclarece: o melhor texto é aquele que procura traduzir os fatos, deixando-o compreensível para qualquer tipo de leitor. Em algumas áreas, a linguagem pode-se tornar hermética ou complexa, que representam uma linha tênue entre a simplicidade assertiva ou reduções que podem gerar ruídos. A filosofia define o ato de explicar teorias complexas de forma simples como reducionismo. É um desafio comum para quem lida com temas voltados à Ciência, Economia ou Direito, escolher as palavras certas.
Nesta semana, a reportagem publicada pelo site The Intercept no último dia 3 de novembro colocou fogo nesta discussão. O texto apresenta novidades no caso envolvendo o julgamento que absolveu o empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a promoter Mariana Ferrer em dezembro de 2018. Além de trazer à tona um caso representativo sobre a dificuldade das mulheres em se defender contra abusos, a história ganhou força por conta de uma escolha editorial incomum.
A repórter Schirlei Alves, autora da matéria, acompanha o episódio desde maio de 2019, quando Mariana cobrou celeridade nas investigações ao publicar, em seu Instagram, detalhes do abuso sofrido em um camarote privado no Cafe de La Musique, beach club de alto padrão em Jurerê Internacional, Florianópolis.
No artigo, ela questiona a reviravolta do caso. A denúncia de estupro de vulnerável, apresentada pelo Ministério Público de Santa Catarina e corroborada por evidências, além da palavra da vítima, culminou com a absolvição do réu em setembro deste ano.
Entre as novidades do caso apresentadas pelo The Intercept, um trecho em vídeo da audiência revelam Cláudio gastão da Rosa Filho, advogado de defesa de Aranha, constrangendo a vítima. Veículos repercutiram a cena, levando a Corregedoria Nacional de Justiça a apurar a condução do juiz. Artigos publicados por UOL e BBC, entre outros, indicam que a estratégia apresentada pelo defensor do acusado é comum.
Mas o que deu ainda mais força para a reverberação da história nas redes sociais está relacionada à escolha editorial do The Intercept ao explicar como o Ministério Público catarinense desconstruiu a vulnerabilidade da vítima. O promotor Thiago Carriço de Oliveira, que assumiu o caso durante o processo, alega que Aranha não tinha como saber que a vítima estava nessa condição.
“Ele sabe que ter relação com alguém sem consentimento é crime. Mas ele não tinha como saber que Mariana estava dopada, sabe que aquela pessoa tem condição de consentir, não sabe que está incorrendo em um crime”, esclareceu Schirlei Alves durante uma conversa com Paula Bianchi, editora do The Intercept, promovida por conta da repercussão da história.
Diante desta circunstância, e como só é possível apontar estupro se houver dolo, a promotoria recomenda a absolvição do réu. “Ele não pode condenar alguém por um crime que não existe”, finaliza. Para resumir e explicar isso ao público leigo, o site sugeriu um termo capaz de explicar o ato de ter relações com uma mulher sem saber se há consentimento: “estupro culposo”.
Não dá para saber se a condução questionável do caso de Mariana Ferrer viralizaria apenas por conta do impacto do vídeo. Foi o termo “estupro culposo”, no entanto, que se espalhou em velocidade altíssima, O impulso veio logo no título da reportagem, que afirma: o julgamento “termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’”.
As conversas geradas pela manchete proliferaram em postagens, textos e notas de repúdio, algumas delas afirmando que a expressão estava declarada na sentença. A confusão gerou uma discussão entre jornalistas e advogados: afinal, houve excesso do The Intercept ao usar esse artifício e induzir parte da opinião pública ao erro?
Diante das manifestações, o MP de Santa Catarina divulgou uma nota: “não é verdadeira a informação de que o promotor de Justiça manifestou-se pela absolvição de réu por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro”. Da mesma forma, o The Intercept atualizou o texto: a expressão foi usada pelo The Intercept “para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo”.
Em conversa com a jornalista Cynara Menezes, Laura Capriglione, editora da rede de mídia Jornalistas Livres, o uso de uma expressão imprecisa pode ser interpretado como uma celeuma desnecessária. “Em geral, quando a gente usa determinadas figuras de linguagem, é para explicar um fato. Mas a história é mais complicada. Na verdade, não foi com base nessa ideia que o réu foi absolvido, eles consideraram que não havia provas. Era muito mais fácil ter dito isso”, explicou.
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Na mesma conversa, a advogada Tânia Mandarino entende que não houve excesso. “A expressão culposa foi para criar um paralelo com crimes que tem previsão em alguns tipos, como homicídio. Na falta de um adjetivo que o Código ou o legislador traga, a comparação jornalística foi adequada e aproxima o leitor leigo da compreensão daquele processo”.
“É sempre legal quando temos a oportunidade de juntar os pedaços e contar melhor a história”, esclarece Paula Bianchi. De certa forma, o barulho gerado pela reportagem fez com que esse mosaico fosse construído além da discussão em redes. Articulistas se apresentaram para explicar o contexto e dar foco ao que importa – coisa que talvez não fosse tão forte se não houvesse a ideia de “estupro culposo”.
É o caso dos advogados Pedro Serrano, Fabiano Silva dos Santos e Marco Aurélio de Carvalho. Após se debruçarem sob a íntegra da audiência, divulgada pelo Estadão, eles corroboram a visão de outros especialistas: ao atacar a vítima como fez, aos olhos inertes de juiz e promotor o advogado do réu cometeu “estupro moral” – outra expressão que não está registrada na sentença.
“Se a tese adotada pelo juiz não é inovadora ou absurda, por que o caso chama atenção? Para além do show de horrores dos trechos audiência que foram divulgados, os pedidos de absolvição feitos pelo Ministério Público ao final do processo, como aconteceu aqui, são raros no dia a dia da justiça criminal”, ressalta a pesquisadora Luisa Moraes Abreu Ferreira em texto na Revista Gama. “Uma das únicas exceções? Crimes que envolvem acusações de violência supostamente praticadas por homens ricos contra mulheres”.
“A gente tem um processo cuidadoso, tentamos ouvir mais gente além da documentação. Nosso material vai para a checagem, para o jurídico, que nos ajuda a fazer Jornalismo com mais força. Fico feliz pela repercussão, mas ao mesmo tempo me chateia: é preciso uma reportagem para que os responsáveis façam alguma coisa?”, esclarece Paula Bianchi, do The Intercept.
A discussão envolvendo o uso do termo, bem como outros exemplos onde a mídia traduz conceitos e se posiciona diante deles, foi o tema do Podcast-se número 267.
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