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Reportagens são base para início de investigações sobre poder público

Em maio, o jornalista Breno Pires divulgava em O Estado de S.Paulo que o orçamento secreto e bilionário do governo federal financiava tratores superfaturados. Começava ali a revelação das manobras no Congresso Nacional para irrigar as emendas dos parlamentares e angariar apoio ao presidente Jair Bolsonaro (PL). A legalidade do orçamento secreto virou pauta de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). As emendas reveladas pelo jornal resultaram em 11 procedimentos de apuração no Tribunal de Contas da União (TCU) e, com base nessas denúncias, a Controladoria Geral da União (CGU) apurou sobrepreço de R$ 142 milhões em processos de aquisição de tratores.

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Reportagens de fôlego costumam servir de base para a instauração de inquéritos e procedimentos de investigação por parte do Ministério Público e dos órgãos de controle e fiscalização dos agentes e contratos públicos. Servem, inclusive, para a abertura de processos internos para averiguar condutas de promotores, procuradores e servidores públicos, como no caso Alstom, sobre contratos suspeitos da multinacional com o governo paulista. Reportagens da Folha de S.Paulo revelaram, em 2013, ter havido falhas na tramitação que atrasaram a colaboração do Ministério Público Federal com as autoridades suíças. Na ocasião, a Corregedoria do Ministério Público instaurou um procedimento de investigação para saber se a falha tinha sido proposital. O procurador-geral da República à época, Rodrigo Janot, se baseou nas matérias da Folha para cobrar respostas.

Estes são apenas dois exemplos de reportagens que deram origem a investigações do Poder Público. “Qualquer pessoa tem o direito constitucional de petição e pode comunicar ao Ministério Público (MP) qualquer fato, pedindo análise e providências, pois o MP está a serviço da sociedade. O MP recebe as informações e abrirá averiguação se entender que há indícios de conduta criminosa ou alguma irregularidade. O jornalista, por sua vez, noticia os fatos após apuração com as fontes, resguardado o sigilo. Não tem obrigação de apresentar provas. Isso é função do Estado e dos órgãos de persecução criminal”, afirmou à Abraji a procuradora regional da República Janice Ascari.

A notícia de jornal não é sequer indício de crime praticado, mas apenas uma narrativa de profissional de jornalismo, sobre suposta conduta”, membro auxiliar da PGR Bruno Fernandes Silva Freitas.

No entanto, não foi esse o entendimento da Procuradoria Geral da República (PGR) para arquivar denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro (PL) iniciada a partir da reportagem intitulada “Eduardo pagou imóveis com dinheiro vivo”, dos jornalistas Juliana Dal Piva e Chico Otávio, publicada em O Globo em setembro de 2020.

O membro auxiliar da PGR Bruno Fernandes Silva Freitas arquivou, em junho deste ano, o pedido de investigação sobre o caso feito por um advogado por meio de uma queixa-crime. Para Freitas, “a notícia de jornal não é sequer indício de crime praticado, mas apenas uma narrativa de profissional de jornalismo, sobre suposta conduta em período anterior ao exercício de mandato de deputado federal da República, sem vinculação ao cargo mencionado”.

No caso das rachadinhas, a Justiça tem se mostrado favorável a Flávio Bolsonaro em outras instâncias. Em novembro, o STF e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheram os argumentos da defesa do senador para anular todas as provas obtidas via medida cautelar do juiz de 1ª instância Flávio Itabaiana. Com isso, as Cortes passam a considerar que foram obtidos ilegalmente os áudios divulgados por Juliana Dal Piva no podcast Uol Investiga sobre a família de Fabrício Queiroz, oriundos de uma busca e apreensão.

Há outros áudios, porém, que são parte da investigação jornalística. A partir de declarações da ex-cunhada do presidente Jair Bolsonaro (PL) e da esposa de Fabrício Queiroz, as gravações (que também citam Flávio Bolsonaro) indicam o envolvimento direto do chefe do Executivo em um esquema ilegal de rachadinhas na época em que era deputado federal, de 1991 a 2018. Esse material foi relacionado pelo MP em um novo pedido de quebra de sigilo do senador, feito em setembro e ainda sob análise.

O crime é organizado, quem o combate também deveria ser”, subprocurador-geral do MPTCU, Lucas Rocha Furtado.

Juristas ouvidos pela Abraji consideram que as decisões das instâncias superiores podem dificultar o trabalho investigativo contra a corrupção.

Para o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU), Lucas Rocha Furtado, o excesso de rigor do Judiciário, como se vê no caso de Flávio Bolsonaro, faz com que o Brasil ocupe lugar pouco confortável em matéria de combate à corrupção.

Furtado diz que, mesmo sem valor probatório, as publicações da imprensa, como as feitas por Juliana Dal Piva e outros jornalistas, podem vir a ser usadas para abrir novas investigações ou enviar representações a outros órgãos públicos. “O crime é organizado, quem o combate também deveria ser”, avalia.

Para o subprocurador-geral, que usa muito o trabalho de jornalistas como referência em suas representações, legar à imprensa a posição de fonte “valoriza a democracia”. “Somos apenas sete no MPTCU. Como eu iria saber o que ocorre no Amazonas ou Rio Grande do Sul se não fosse a imprensa?”, questiona.

Jornalismo investigativo

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutor em mídia e conhecimento, Samuel Pantoja Lima, explica que o jornalismo investigativo é praticado quando o repórter atua por iniciativa própria. “O pressuposto é encontrar provas, documentos e instrumentos para entendê-los”, diz. “Jornalismo investigativo não pode ser declaratório, não deve ser por nota. Nota de corruptos existem muitas”, acrescenta.

Lima recorda de reportagens recentes com impacto em investigações, como a da Agência Pública sobre o fundador da Casas Bahia, Samuel Klein, que ampliaram indícios sobre os casos de suposto abuso sexual que teriam sido cometidos pelo empresário, e recua na história para trazer casos emblemáticos.

No livro-reportagem “Todo dia a mesma noite” (Intrínseca, 2018), a jornalista Daniela Arbex vasculhou, segundo o professor da UFSC, todo o processo da tragédia da boate Kiss e expôs fragilidades e contradições na condução “corporativista” do Ministério Público no inquérito que investigou a morte de 242 pessoas.

“A apuração de Arbex resultou, no mínimo, em grande pressão. Eles retiraram das investigações autoridades da linha de comando, de poder, tanto do poderio militar quanto da prefeitura de Santa Maria, que eram responsáveis. A boate Kiss ficou três anos e quatro meses funcionando irregularmente. Era uma roleta russa”, conta Lima.

Outra referência é o trabalho do jornalista espanhol Antonio Salas, no livro “Diário de um Skinhead” (Planeta, 2006). Salas se infiltrou na Ultra Sur, torcida organizada do Real Madrid, para investigar comportamentos xenófobos de inspiração nazifascista por parte de hooligans. “O Ministério Público espanhol pegou todo o material de apuração — ele tinha gravado muita coisa em vídeo — e o tomou como ponto de partida para a investigação. Criminosos acabaram presos”, conta o professor da UFSC.

*Matéria originalmente publicada no site da Abraji.

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Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Criada em 2002 por um grupo de jornalistas brasileiros interessados em trocar experiências, informações e dicas sobre reportagem, principalmente sobre reportagens investigativas. É mantida pelos próprios jornalistas e não tem fins lucrativos.

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