A regulação da chamada comunicação audiovisual sob demanda (“Video on Demand” ou VoD) divide as opiniões. A medida é prevista no Projeto de Lei do Senado (PLS) 57/2018, do senador Humberto Costa (PT-PE), que tramita na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE). A intenção é tornar empresas como Netflix, Hulu ou Amazon Prime Video sujeitas a obrigações iguais às de marcas brasileiras, como o serviço Now, da Net, ou produtos Globo. A proposta também impõe condições de priorização de títulos nacionais nos instrumentos de busca e seleção oferecidos pelas fornecedoras, com um percentual mínimo de exibição e destaque visual na tela.
Por um lado, essa disciplina sobre a distribuição de conteúdos por banda larga diretamente a televisões, celulares e outros aparelhos é defendida por categorias como a dos cineastas, que consideram os serviços de VoD um negócio como qualquer outro e, portanto, passível de tributação. Na outra ponta, entre os que acham que a medida engessará o setor, estão, por exemplo, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e produtoras como a Motion Picture Association of America (MPA).
Humberto Costa garante que a proposta beneficiará a indústria audiovisual do país, sem prejuízo aos consumidores. Ele ressalta que empresas como a Netflix lucram R$ 4 bilhões por ano só no Brasil, sem cooperar com a produção nacional. A ideia, segundo o parlamentar, é aplicar uma contribuição progressiva de até 4% sobre o faturamento bruto apurado, acompanhando práticas de outros países para esse mercado. Pelo texto, as empresas globais darão sua parte por meio da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). O senador lembra que essa cobrança já é praticada em países como Itália, Espanha, França, Estados Unidos e Chile.
“O projeto em nada deve penalizar o brasileiro. Pelo contrário, tem como objetivo apenas regulamentar o setor de conteúdo sob demanda, que vem crescendo rapidamente no país e precisa estar sujeito a obrigações equiparáveis a outros produtos do mercado”, declarou o senador.
É a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). Foi instituída em 2001 por meio de Medida Provisória 2.228-1 e teve sua cobrança ampliada pela Lei 12.485/2011, marco regulatório do serviço de TV por assinatura.
O produto da arrecadação da Condecine alimenta o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), sendo revertido diretamente para o fomento do setor, ou seja, para financiar a produção de filmes e vídeos. O FSA se tornou hoje o maior mecanismo de incentivo ao audiovisual brasileiro, ao propiciar investimentos em todos os elos da cadeia produtiva do setor.
O Condecine é cobrado das empresas ou pessoas que exibem, produzem, licenciam ou distribuem filmes e vídeos com fins comerciais. Os valores são fixos, dependendo do tipo de produto e variam de R$ 92,79 a R$ 7.291,25 por título, a cada cinco anos.
Também incide sobre a remessa ao exterior de receitas da comercialização desses produtos no Brasil. Por exemplo: quando os distribuidores do filme Coringa remeterem aos produtores ou distribuidores norte-americanos o pagamento pela comercialização da película em território brasileiro, terão de recolher 11% sobre o total dessa remessa. Só estarão isentos se optarem por aplicar o valor correspondente a 3% da remessa em projetos de produção de conteúdo audiovisual independente, aprovados pela Agência Nacional de Cinema (Ancine).
A partir da entrada em vigor da Lei 12.485/2011, marco regulatório do serviço de TV por assinatura, que abriu o mercado às operadoras de telefonia, a Condecine passou a ter também como fato gerador a prestação de serviços que se utilizem de meios que possam, efetiva ou potencialmente, distribuir conteúdos audiovisuais.
Empresas como Netflix, Hulu ou Amazon Prime Video ficariam sujeitas a obrigações iguais às de marcas brasileiras como o serviço Now, da Net, ou produtos Globo.
A CAE já promoveu duas audiências públicas sobre o assunto. O relator do PLS 57/2018, senador Izalci Lucas (PSDB-DF), tem prometido entregar o relatório ainda em outubro. Mas a criação de uma frente parlamentar no Congresso Nacional, no último dia 16, ainda deve estender o debate. Intitulada Frente Parlamentar Mista em Defesa do Cinema e do Audiovisual Brasileiros, a comissão tem apoio de mais de 270 parlamentares, entre deputados e senadores de todos os 25 partidos políticos com representação no Parlamento.
Humberto Costa, que participou do lançamento da Frente, disse ser importante ouvir todas as opiniões sobre o tema. Ele argumentou que sua preocupação, ao apresentar o projeto de lei, foi criar condições para alavancar um setor no qual o Brasil tem demonstrado competência, mesmo neste momento de “guerra cultural” no país.
O senador Carlos Viana (PSD-MG), que é jornalista, também considera importante modernizar a legislação relativa a esse mercado. Ele observa que, como emissoras de televisão abertas e por assinatura, que já obedecem a regras, as mídias sob demanda também estão caminhando para se tornar parte de um pacote único a ser acessado pela população. O parlamentar diz ser preciso manter o que vê como ganhos do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), pelo qual a rede mundial de computadores não pode ser taxada. Mas também considera avanço o incentivo à produção de conteúdo nacional, promovido pelo PLS 57/2018.
“Hoje, no Brasil, quem produz esse conteúdo obrigatoriamente tem que cumprir uma cota para as produtoras, especialmente as menores. E esse ponto nós precisamos defender e ficar atentos, para que os canais de TV pela internet também garantam essa parcela da nossa cultura nas telas”, afirmou.
O diretor da Associação de Produtores de Audiovisual do Centro-Oeste e presidente do Congresso Brasileiro de Cinema, Rojer Garrido de Madruga, concorda com os termos do Projeto de Lei. Em audiência pública da CAE no dia 7 de outubro, ele disse não haver interesse das grandes empresas na livre concorrência e no pagamento de impostos, o que é uma atitude usual no mercado. Ponderou, no entanto, que o mercado de VoD “é um negócio como qualquer outro, com produto e ponto de entrega”, e sugeriu uma legislação “com a dose certa” certa em matéria de tributação: “não tributar demais nem regular demais para não matar o negócio”.
“É muito mais fácil simplificar toda a burocracia cobrando em cima do faturamento. Claro que não pode ser muito nem pouco, e até podemos usar o modelo da Espanha e Itália, que tributam essa atividade em 5%”, argumentou, ao reconhecer que as atuais tabelas do Condecine são de difícil entendimento, por conterem regras específicas para uma grande variedade de situações.
Ao se definir como “um pequeno produtor”, ele identifica alarmismo de distribuidores e exibidores em relação a tributação e cotas. E toma como referência o que ocorreu durante os debates que levaram à votação da Lei 12.485, em 2011, sobre o audiovisual. “Eu me lembro como se fosse hoje. [Diziam que] se tivesse cotas e Condecine, se o setor fosse regulado, acabaria o setor. Pelo contrário, funcionou muito bem. Foram cinco anos de debate e houve um amadurecimento em torno de uma legislação em que todo mundo ganha”.
Madruga mencionou ganhos adicionais com o acesso à produção nacional, além de empregos no setor de audiovisual, como a promoção indireta do turismo.
Coordenadora do Intervozes, organização que atua pela efetivação do direito à comunicação no Brasil, Marina Pita disse na CAE que o PLS 57/2018 é “importante e urgente”. Ela ponderou que o VoD é a disponibilização de conteúdos na internet e, portanto, um mercado passível de regulação. A debatedora observou, porém, que a proposta deve estar em consonância com a Lei 12.485/2011, que já regra a produção de conteúdo audiovisual por assinatura. “O Brasil é signatário da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. E a cultura é um elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacional. Então, o projeto de lei não só é necessário, mas legítimo e urgente”.
André Klotzel, diretor da Associação Paulista de Cineastas (Apaci), observou que o audiovisual é um bem de consumo, só que imaterial, mas sem taxação no país. Para ele, é “absurda e desproporcional” a não tributação dessas operadoras, tendo em vista a abrangência irrestrita delas, por meio da internet, e o expressivo volume de recursos mobilizados. “O estabelecimento de cotas não é uma invenção, não é um gesto autoritário nem cerceador. Pelo contrário: é uma compensação. Então, a subvenção ao audiovisual segue o mesmo caminho, e 4% de contribuição, que vai se converter em incentivo à produção brasileira, é algo irrisório”.
Para o presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav), Leonardo Edde, regulações são benéficas a qualquer indústria. Segundo ele, o PLS 57/2018 atende a todos os segmentos envolvidos na escala de produção audiovisual, inclusive os independentes. Para Edde, além de proporcionar segurança para o consumidor, normatizar o setor vai gerar igualdade na concorrência, segurança jurídica para todas as plataformas, mais investimentos, além de oportunidades para empresas nacionais e internacionais.
“Uma regulação eficaz, clara e que tenha o objetivo de desenvolver todos os segmentos da cadeia produtiva tem impactos produtivos. Então, uma regulação bem construída não é uma âncora, mas um indutor. A gente entende que o PLS 57/2018 é positivo e é feliz ao trazer tudo o que deu certo a partir da Lei 12.485/2011”.
Contrária ao projeto de Humberto Costa, a diretora de Relações Governamentais e Políticas Públicas da Netflix, Paula Pinha, considerou que a tributação de serviços sob demanda não produziria os mesmos efeitos obtidos em outros setores do audiovisual, como o cinema e a televisão. Ela afirmou, em audiência na CAE, que a cota sugerida no PLS 57/2018 prejudica produtores e consumidores, uma vez que os catálogos de ofertas de obras deverão ser reformulados com a futura aprovação da lei. “Se um dos pilares do projeto é garantir a presença de conteúdo brasileiro nesse novo segmento de mercado, a discussão de medidas alternativas de fomento à atividade seria o caminho mais acertado”.
Para José Maurício Fittipaldi, da Motion Picture Association of America (MPA), o PLS 57/2018 corre o risco de se caracterizar como um “abuso regulatório”, já que a proposta pode resultar em reserva de mercado. Ele disse ser necessário observar dados técnicos e comportamentais do setor, antes de adotar qualquer medida nesse sentido. “Estamos num cenário desafiador, dentro de um contexto de crise econômica, onde fica claro que esse projeto é altamente intervencionista e excessivo”.
Para o diretor-geral da Abert, Cristiano Lobato Flores, é importante discutir o projeto, que propõe a organização do serviço e a regulação do acesso à informação, além de estabelecer cotas de tributação e de tratar de temas relativos à responsabilidade editorial. Flores avaliou, no entanto, que o modelo proposto por Humberto Costa é “denso demais” e poderá impedir o crescimento do setor. “Não é uma tarefa fácil. Estamos falando de uma agenda regulatória, inclusive sobre de que tipo será: se densa, se soft ou até mesmo se haverá essa regulação. Até porque o mercado ainda é prematuro, e não demanda uma intervenção estatal”.
Em uma das audiências públicas da CAE, o secretário do Audiovisual da Secretaria Especial da Cultura Ministério da Cidadania, Ricardo Rihan, mostrou-se contrário aos “excessos regulatórios”. Defendeu, no entanto, uma tributação para o mercado de VoD, como forma de garantir a isonomia competitiva entre as empresas. “As grandes mediatechs, conceito que está na essência das startups de mídia, por exemplo, têm que contribuir também, de acordo com a relevância que têm no mercado”.
Já o subsecretário de Competitividade, Concorrência, Inovação e Serviços do Ministério da Economia, Marcelo de Matos Ramos, observou que o crescimento do VoD revolucionou o mercado, criando uma dinâmica de concorrência no setor. Para ele, o desenvolvimento dessas empresas não deve ser impedido por uma regulação impensada. Ao comentar que discussões sobre o assunto se arrastam por anos junto ao Conselho Nacional de Cinema, Ramos advertiu para o fato de que o PLS 57/2018 pode seguir o mesmo caminho, impedindo a inovação no país.
“Não seria possível pensar num novo modelo para o setor audiovisual que progressivamente diminua o peso da intervenção estatal, deixando o setor privado criar sua própria dinâmica? Por que não inovar no fomento? Creio que isso resolveria muitos problemas relacionados até mesmo ao incentivo, já que o VoD está conseguindo aumentar a diversidade. E por que não termos uma fatia desse mercado?”.
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Reportagem: Aline Guedes
Pauta e coordenação de reportagem: Paola Lima e Sheyla Assunção
Coordenação de infomatéria e edição multimídia: Nelson Oliveira e Bernardo Ururahy
Operador multimídia: Aguinaldo Abreu
Pesquisa fotográfica: Ana Volpe
Edição do Portal de Notícias: João Carlos Teixeira
Foto de capa: Andrés Rodríguez/Pixabay
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