Sobre arte, censura e história: o que diz a lei?

Em 1933, Hitler subiu ao poder e um dos primeiros acontecimentos marcantes foi a fogueira de livros organizada em maio de 33. A consequente criação da Câmara de Cultura, liderada por Goebbels, garantiu que somente indivíduos de origem ariana, sem inclinações bolchevistas, tidos como inimigos “não-alemães”, poderiam seguir sendo artistas e desenvolver seu ofício. Dentre esses artistas arianos e “suficientemente” alemães para explorarem a arte, um dos de maior destaque foi Leni Riefenstahl. Responsável pelo filme o “Triunfo da Vontade” e por belas fotografias das Olímpiadas de 1936, Leni, no entanto, caiu no esquecimento ao final da guerra, quando foi taxada como “a cineasta de Hitler” (enquanto Marlene Dietrich, atriz sem grandes feitos até então, era elevada a heroína das tropas anti-nazistas).

Em 1967, Patti Smith conheceu Robert Mapplethorpe, que, após passar muitas dificuldades e percalços, relatados por Patti no livro “Just Kids”, alcançou notoriedade como fotógrafo. Além de suas imagens que agradam ao público em geral, retratando naturezas-mortas e personagens célebres de high-society, Mapplethorpe ficou mais conhecido por suas imagens retratando sexo, homossexualismo, BDSM, e outros temas que podem ser considerados XXX. A exposição The Perfect Moment gerou inúmeros protestos quando abriu pela primeira vez no final dos anos 1980 e, apesar de alguns contratempos, foi exibida com sucesso em uma turnê por sete grandes cidades dos Estados Unidos, atraindo mais de 80.000 visitantes.

Parece que, em pleno 2017, temos muito a aprender com esses exemplos. Há décadas presenciamos o embate entre arte, conservadorismo, liberdade de expressão e censura; esse debate é ainda mais amplo em tempos de redes sociais e conexão contínua, quando todos têm um espaço para expor seus próprios “editoriais”, e usam discursos de moral para alavancar discursos políticos, religiosos ou ambos.

A Constituição Federal prevê como garantia fundamental a liberdade artística, independente de licença ou censura. Ou seja, ninguém precisa de autorização para fazer arte, expô-la, e ninguém pode impedir que o outro se expresse artisticamente.

No mesmo artigo, a Constituição garante também a livre manifestação do pensamento, a liberdade religiosa, e que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada sem lei que o determine.

Na interpretação pelo STF, essas liberdades não podem ser diminuídas e, muitos menos, excluídas. Pelo contrário: o tribunal julgou revogada a Lei de Imprensa, entendendo que qualquer limitação da liberdade de expressão é incompatível com a democracia, e que a liberdade é a regra geral. Julgou também que as biografias são livres, e qualquer reação deve ser posterior à publicação.

Além desses direitos fundamentais, a Constituição prevê também que o Governo Federal exercerá a chamada classificação indicativa de diversões públicas, que não pode se confundir com censura política, ideológica ou artística. Ressalte-se que a classificação é indicativa e, como tal, não representa proibição, mas sim uma simples recomendação ao público, que decidirá participar ou não da atividade. Recai, então, no caso do cinema e da televisão, sobre os exibidores e programadores atenderem às regras e exporem os símbolos e a classificação etária. A partir daí cabe aos pais e responsáveis optar por deixarem seus filhos terem acesso ou não a um evento abaixo da faixa etária da classificação indicativa, assim como cabe aos indivíduos maiores de 18 anos decidir qual ambiente frequentar e quais temas quer conhecer.

Qualquer outra forma de tratar e classificar a exibição ou exposição artística ou cultural configura censura; o fechamento de uma exposição, a colocação de uma tarja preta, os julgamentos e linchamentos públicos, são “receitas de bolo” apregoadas por minorias intolerantes que não sabem lidar com o que é diferente, e por isso duplamente atropelam os direitos fundamentais constitucionais, ofendendo os das vítimas e abusando dos seus próprios.

Cada cidadão (mãe, pai, tio, filho) pode – e deve – exercer sua liberdade de ir e vir, visitar ou não os museus e atrações da cidade; dizer o que pensa, expressar sua satisfação ou insatisfação com determinadas formas artísticas e/ou culturais; enfim, escolher e dirigir sua educação, lazer e cultura, promovendo seu desenvolvimento, com respeito aos outros e zelo por sua dignidade.

A posição que tomarmos hoje dirá se somos, no caso da história, Leni ou Marlene; a posição que defendermos mostrará quem está na marcha a ré, e quem está em sintonia com a maioria que prefere a liberdade. Nem parece que a última ditadura foi há menos de 35 anos.

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Por Rafaela Cysneiros. Especialista em Direitos da Internet e advogada do escritório Martins de Almeida Advogados. E-mail: contato@mda.com.br.

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