Pare de falar que a sua empresa fez transformação digital se ela apenas se digitalizou

Se a sua empresa acabou de relançar o site com uma nova estrutura de atendimento online, uma plataforma de e-commerce com ótimo desempenho ou muito mais presença em redes sociais, você pode dizer que fez boas ações de comunicação ou de marketing digital. Mas, por tudo que é mais sagrado, não chame isso de transformação digital. Este termo vai além do que a mera semântica pode dar a entender.

Existe diferença entre transformação digital, digitalização e digitização — para este terceiro, é preciso pedir perdão à língua portuguesa por se tratar de um neologismo importado do inglês (digitization).

Mas o fato é que convém conhecer a diferença entre eles porque são aspectos práticos, que nos acompanham no dia a dia. Para ajudar a explicar com mais profundidade esses conceitos, bati um papo com Alex Sanghikian, um dos responsáveis por inovação digital da Schneider Eletric, multinacional francesa com 184 anos de vida, 144 mil funcionários e presença em mais de 100 países. Você pode ouvir a íntegra da conversa em um podcast no final deste post.

Então, vamos entender cada um deles, do mais simples para o mais complexo.

Digitização

É o ato de copiar e colar de um processo analógico para um digital, explica Alex. Por exemplo, no consultório médico você preenchia a ficha cadastral no papel, mas agora faz isso num formulário online. Nada realmente mudou a não ser a mera transposição do velho processo do mundo físico para o digital.

Fiz um curso conduzido pelo BCG (Boston Consulting Group) em parceria com a Universidade da Virginia, dos Estados Unidos, e o exemplo de digitização usado por eles também é corriqueiro: o cartão de embarque das companhias aéreas. Até outro dia, nós imprimíamos o cartão para entrarmos no avião. Agora, o temos na tela do celular. É um avanço? Sim, sem dúvida! É transformação digital? Não! É apenas digitização.

Mas veja: o fato de ser apenas digitização não significa que seja ruim. Pelo contrário. Um estudo do MIT chamado “Sloan School of Management” constatou que as empresas que aumentam tanto a excelência operacional digital quanto a experiência do cliente fazem crescer sua margem líquida média em até 16 pontos percentuais. O cartão de embarque na tela do celular em vez de impresso se enquadra perfeitamente nessa condição.

Digitalização

Para Alex, digitalização vai um passo além da digitização, pois envolve algum tipo de inteligência, benefício ou retorno para a empresa. Por exemplo, muitos profissionais de contabilidade precisam entrar no site da Receita Federal, baixar uma fatura e fazer o pagamento daquele documento. Os RPAs (Robotic Process Automation) são os robôs programados para fazer essa função. Isso é a digitalização.

Segundo o BCG, muitas empresas têm usado esse conceito para desenhar a jornada do cliente.

E não se trata apenas de uma jornada. Algumas empresas têm jornadas diferentes para clientes diferentes que usam canais diferentes para comprar produtos ou serviços diferentes. Calcule, então, a quantidade de combinações que sai disso.

Por exemplo, um banco vai ter um processo para abertura de conta, outro para pedido de empréstimo e outro para transferência de dinheiro. Há um conjunto diferente de jornadas para donos de empresas e pessoas físicas. São dezenas (talvez centenas) de possíveis jornadas do cliente dentro de uma mesma empresa — no caso, um banco.

Imagine quantos processos são necessários — e quantos erros os seres humanos podem cometer com tamanha complexidade. Quando a digitalização é implantada, há um ganho enorme de velocidade e de precisão.

Transformação digital

Ainda que você tenha robôs e mecanismos automatizados rodando com sincronismo, a transformação digital não terá acontecido ainda. Ela vai além. Segundo Alex, ela “consiste em criar um produto ou processo novo com o core no digital, muitas vezes deixando de lado a forma como tudo era feito no ambiente físico”.

A teoria pode parecer complicada, mas a prática está ao seu redor. Alguns anos atrás, você ia à Blockbuster e agora vê filmes pela Netflix, uma empresa que é a pura tradução da transformação digital. A mesma coisa vale para Uber, PayPal e tantas outras.

“A gente tem visto no mercado uma visão um pouco míope do que é transformação digital. Muitas empresas acham que o simples fato de criarem um e-commerce já significa que elas praticaram a transformação digital, o que não é verdade. Precisa ir um pouco mais a fundo no conceito”, adverte Alex.

Quando mencionam transformação digital, as empresas estão falando de uma operação baseada em alguns elementos dos quais você ouve falar, mas talvez não tenha associado o nome à pessoa. O BCG coloca no centro da transformação digital elementos como:

  • Big data;
  • Inteligência artificial;
  • Computação em nuvem;
  • Internet das coisas;
  • Cyber segurança;
  • Blockchain;
  • Manufatura aditiva (impressão 3D).

A transformação digital não se limita a esses elementos. Pode ir muito além, conforme a inovação traz ao mundo mais possibilidades.

O papel da tecnologia

Mas transformação digital é uma questão apenas de implantar tecnologia de ponta?

“A tecnologia, por si só, não faz diferença nenhuma. O grande diferencial está em solucionar um problema que de fato existe”, responde Alex.

Outro aspecto interessante na pergunta está na definição do que é “tecnologia de ponta”. O que é vanguarda hoje será obsoleto em certo momento. Tem sido assim há muito tempo, o que nos permite afirmar que, na realidade, a transformação digital vem acontecendo há pelo menos 60 anos. Muito antes, portanto, dos avanços tecnológicos presentes em nossas vidas hoje.

Vejamos alguns exemplos que comprovam isso:

  • No final da década de 1960, só existiam relógios mecânicos, com domínio de marcas como a suíça Swatch. Vieram os relógios digitais criados por fabricantes japoneses. Eles mudaram o mercado para sempre.
  • As máquinas de escrever, como as Remington, foram atropeladas pelos computadores a partir do final dos anos 70 — e mais intensamente nos anos 80 e 90.
  • Nos anos 80, as máquinas fotográficas eram dominadas pela Kodak, mas logo elas foram substituídas pelas máquinas digitais.
  • Motorola, Nokia, Blackberry, Palm e outra pareciam ser as disruptivas do mercado de celulares nos anos 90 até aparecer o iPhone.

Segundo a BCG, Isso tudo veio antes dos casos mais citados hoje, como indústrias de editoria (Amazon substituindo livrarias), de música (Spotify, iTunes e cia substituindo), de videolocadora (Netflix quebrando a Blockbuster), de transporte (Uber mudando a forma como se usam carros) e outros casos.

Entenda que existem empresas e universidades debruçadas sobre o tema. Não dê ao termo “transformação digital” a sua própria interpretação, sob o risco de pagar o mesmo mico que o jogador de futebol que um dia acreditou que “ponto facultativo” era uma cidade cheia de faculdades.

Ouça este post

A conversa com Alex Sanghikian foi publicada na 219ª edição do Podcast-se, que você ouve abaixo.

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Cassio Politi

Já foi editor e diretor de conteúdo do Comunique-se, além de ombudsman do Portal. Atualmente, dirige os cursos do C-se e é o responsável pelo Podcast-se, que figura entre os top-10 podcasts de marketing do País de acordo com o Chartable. Escreveu o primeiro livro em português sobre content marketing. Em 2015, foi eleito pela Digitalks o profissional do ano em content marketing no Brasil. É, desde 2014, o único brasileiro a compor o seleto júri do Content Marketing Awards, o principal prêmio do mundo na categoria. Por sua empresa, a Tracto, presta consultoria ou produz conteúdo para empresas de variados portes no Brasil e na América Latina, incluindo multinacionais. Apresentou alguns de seus cases em eventos nos Estados Unidos. Está no Hall da Fama do Content Marketing World, em Cleveland, do qual participa anualmente desde 2012.

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