Recentemente uma jornalista viu-se obrigada a pedir demissão após ser vítima de seguidas atitudes que podem ser configuradas como assédio moral por parte do seu chefe. Alguns exemplos: desrespeito em voz alta no meio da redação, foi retirada do ar como apresentadora – função que exercia há anos na emissora – era frequentemente escalada para fazer pautas consideradas menos importantes e que outros colegas homens se recusavam a fazer. Os ataques começaram após a jornalista denunciar para pessoas da equipe alguns desmandos que o chefe cometera numa viagem a trabalho em que ela estava presente. As atitudes intimidaram a jornalista, que tentou diversas vezes relatar o caso ao chefe máximo do departamento, mas esse sequer a recebeu em sua sala. A profissional, que tinha como características o bom humor e o sorriso sempre aberto, começou a tomar antidepressivos e a chorar constantemente na redação.
A jornalista tinha doze anos de emissora. O caso está na Justiça. A profissional foi acusada por um dos diretores de ter sido “deselegante” por mover uma ação por danos morais. Enquanto isso, o chefe que a atacou continua na mesma empresa, na mesma função.
Também recentemente, uma jornalista foi demitida depois de ouvir do seu superior que nada tinha contra o trabalho dela, mas que o problema era o comportamento. A outros profissionais que ficaram na casa, o tal superior afirmou que a jornalista, que ocupava cargo de gestão, foi demitida por insubordinação. Sim, insubordinação. Sabe-se lá o que ele quis dizer com o termo em pleno século vinte e um, trinta e três anos após o fim da ditadura militar no Brasil. Logo que assumiu o cargo, essa mesma jornalista enfrentou resistência de vários colegas, que simplesmente se recusavam a atender as suas orientações. Ela teve que ser firme para que o trabalho andasse e, em troca, foi citada como assediadora moral em processos trabalhistas que esses outros jornalistas moveram contra a empresa após serem desligados. A diferença entre este e o primeiro caso: ela, a chefe mulher, acabou demitida. Na história que abre o texto, a assediada foi quem teve que pedir demissão. Com o assediador, o chefe homem, nada aconteceu. Com exceções, para confirmar a regra, o mercado de trabalho tem sido assim: se o homem age com firmeza é assertivo, seguro; se a mulher age com firmeza é dura, autoritária. Se o homem levanta a voz em algum momento de clima quente – e sabemos que esses momentos não são raros numa redação – ele é considerado determinado, decidido, destemido. Se a mulher altera o tom de voz é classificada como descontrolada, louca, destemperada.
Ainda recentemente, uma jornalista foi atacada verbalmente por um profissional que se recusava a aceitar mudar de produto na empresa. Ela só não foi agredida fisicamente porque pediu ajuda a colegas que estavam por perto e levaram o agressor para longe. Esse mesmo homem já havia tido comportamento agressivo com outras duas chefes. Todos sabiam disso. A direção do departamento sabia disso. O RH da empresa sabia disso. Essa mesma jornalista também havia descoberto que o profissional usava informações velhas e entrevistas antigas nas suas reportagens, e levou o caso ao superior hierárquico. O jornalista, protegido pela gerência de RH, foi trocado de departamento enquanto a jornalista ainda estava na empresa porque ela se recusou a continuar interagindo com um homem que por pouco não a agredira fisicamente. No entanto, surpreendentemente – ou não – menos de uma semana após a jornalista deixar a empresa, o agressor voltou ao departamento em que tem o histórico de agressões às chefes. Pela porta da frente, como se nada tivesse acontecido.
Também recentemente, uma profissional que participava de reuniões com chefes de jornalismo era obrigada a ouvir aberrações como “fulana só consegue informações exclusivas porque faz sexo oral nas fontes”, ou “quem você quer comer, sicrano?”, quando o interlocutor dizia que precisava contratar uma apresentadora em vez de um apresentador.
São histórias conhecidas nas redações, mas para as quais todos parecem fechar os olhos. Tudo isso numa época em que as mulheres já dividem por igual com os homens o número de vagas no mercado de trabalho. Tudo isso numa época em que 40% dos domicílios no País são chefiados por mulheres. Tudo isso numa época em que 72% das mulheres brasileiras declaram preferir o trabalho remunerado às tarefas domésticas. Tudo isso numa época em que mais da metade dos empreendedores que iniciam um negócio é formada por mulheres. Os dados são do IBGE.
Tudo isso numa época em que, a despeito dos números positivos, menos de dez por cento dos cargos de chefia e direção nas instituições brasileiras são ocupados por mulheres. Tudo isso numa época em que mais de 130 mulheres são estupradas por dia no Brasil. Tudo isso numa época em que doze mulheres são vítimas de feminicídio todos os dias. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Tudo isso numa época em que jornalistas esportivas precisam fazer uma campanha na internet para que consigam trabalhar em paz, sem que sejam vítimas de agressões sexuais, verbais, físicas, violentas e machistas. Tudo isso recentemente. Recentemente demais para que as mulheres se calem, governos e justiça finjam não enxergar e assediadores e cúmplices sigam impunes.
Lídice Leão. Jornalista com 25 anos de experiência em redação. Exerceu cargos de chefia na RedeTV, Band e Rádio Eldorado, com passagens pela RecordTV, Jornal da Tarde e Estadão. Fez curso de extensão universitária em Filosofia na FFLCH/USP. Atualmente é diretora da agência de comunicação que leva seu nome.