A Vivo lançou filme publicitário em que a família é constituída por dois pais. Mais uma marca que provoca reflexão sobre a liberdade sexual e mexe com as tradições de uma sociedade que precisa dialogar com o próprio tempo
A Vivo lançou filme publicitário para divulgação de seu plano familiar. O comercial retrata a história de uma menina que, após participar de uma competição de natação, comemora a conquista nos braços de seus dois pais.
A trilha sonora, uma versão de “Saber Amar”, dos Paralamas do Sucesso, garante leveza à produção.
Porém, é de se esperar que a Vivo seja castigada nas redes sociais por parcela de consumidores resistentes ao debate de gênero, muito embora tenha, com sutileza, transmitido uma irrefutável mensagem de amor.
O Brasil é um país interessante. Ao mesmo tempo em que politizamos questões absolutamente banais, por vezes somos lenientes com a barbárie política ou com a falência dos serviços públicos básicos.
Não bastasse, perdemos pouco a pouco a capacidade de estabelecer vínculos coerentes com a história. Vivemos apenas o presente, uma existência imediatista. O folclore, os costumes, as tradições, a cultura etnográfica e tantas outras marcas são apenas registros longínquos de uma sociedade que parece não ter existido. A existência já não se justifica na profundidade humana dos vínculos. Somos virtuais, meras conexões telemáticas.
O rompimento com o passado e a despolitização de temas interessantes à sociedade nos leva a viver um hiato de individualismo. Nossos poucos diálogos caracterizam-se mais pela imposição do que pela dialética. A negação do novo e do diferente é vista com desdém, com menosprezo ou, quando não, com violência.
O “eu acho” e o “eu penso” tornaram-se verdades absolutas ocultadas por avatares que assumem toda responsabilidade (ou nenhuma responsabilidade), descomprometidos com o debate e com a construção de entendimentos. Assim vamos, reinando absolutos em nossas ilhas, apesar de vivermos num arquipélago de divergências.
A discussão sobre gênero tem se colocado neste fogo cruzado. Se a família, a escola e a política já não são fóruns confiáveis para o estabelecimento do debate, foi a publicidade que se avocou da função de ser o veículo por meio do qual se estabelece o diálogo, seja por ser uma forma mais palatável de comunicação, seja porque as marcas gozam de credibilidade suficiente para serem os espelhos da sociedade.
Contudo, travestir-se desta responsabilidade significa correr o risco da crítica, especialmente daquela que, pela imperatividade com que é construída, situa-se no campo do chamado “discurso de ódio”, que refuta qualquer espécie de mudança, especialmente quanto à possibilidade de haver novas formatações de família.
Negar tal transformação é, a um só tempo, a negação do próprio passado, desconsiderando o movimento histórico que luta pelo reconhecimento das variadas formas de expressão de amor, e negação do futuro, ao desdizer a evolução da sexualidade e suas diferentes formas de manifestação. As críticas que comerciais como este provocam acabam se tornando palavras perdidas no tempo e no espaço, pois não se constroem sob fundamento histórico, nem reconhecem as transformações que batem às portas do futuro.
As propagandas que apresentam diferentes formas de relação afetiva estabelecem um diálogo com a sociedade, propondo o reconhecimento desses novos formatos. A resistência é óbvia. Grupos de interesses tendem a se posicionar contrários a elas, sob o argumento de serem impositivas e pretenderem uma desestruturação da família e da tradição. Algumas delas, é verdade, são excessivamente impositivas, não permitindo uma reflexão sobre nossos próprios julgamentos. Até que se encontre o equilíbrio, muitas marcas sofrerão as consequências de possíveis interpretações que a julguem como imperativas.
A resistência quanto ao tema abordado pela Vivo tem menos a ver com o determinismo biológico, e mais com o construcionismo social, isto é, a defesa da divisão clássica homem-mulher serve ao estabelecimento de relações de poder, na qual a mulher, pela tradição patriarcal, subordina-se ao homem, que, por sua vez, mantém na unidade familiar uma posição hegemônica. Tal divisão é posta em xeque na medida em que a homossexualidade masculina implica certa renúncia a esta hegemonia. O contraponto é o movimento crescente de restauração da masculinidade, que se observa em algumas propagandas que têm foco no enaltecimento da virilidade e do orgulho heterossexual.
Questionamento inevitável: a publicidade, ao estabelecer este diálogo, o faz de modo desinteressado? Vale sempre lembrar que publicidade é comunicação com pretensão de gerar resultados econômicos. A opção pelo debate das diferentes concepções de família está ligada à sustentabilidade e à inclusão, a partir do reconhecimento de que a aceitação das diferenças torna as marcas mais flexíveis aos diferentes tipos de consumidores, e que, em médio e longo prazos, pode significar uma estratégia de sustentabilidade da própria empresa.
Por outro lado, os consumidores querem se sentir representados por marcas que respeitem as opções de seu público. O binômio demanda-oferta, em que a publicidade era mero instrumento de viabilização de consumo e redução de estoques, deu lugar a uma relação de representante-representado, que possibilita aos consumidores tornarem-se sujeitos ativos no processo de transformação. Exemplo disso são as marcas que gozam de credibilidade por seu respeito ao meio ambiente.
Neste cenário, as marcas precisam ter especial atenção a todos os consumidores, sem que se admita exceção. Isso não significa o abandono das tradições culturais clássicas, nem um lançamento irresponsável à revolução dos costumes. Passado e presente devem dialogar na publicidade, que, de modo atemporal, deve demonstrar a possibilidade de se respeitarem todos os consumidores, sejam quais forem suas escolhas, politizando o que, de fato, merece ser posto em discussão: qual é, afinal, o gênero da palavra amor?
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