A blindagem aos pilotos na Fórmula 1 passa pelos mínimos detalhes. Representar um país, uma equipe, além de marcas que são líderes em seus segmentos, exigem cuidados e tamanha responsabilidade desses atletas. O primeiro episódio da terceira temporada da série documental “Dirigir para Viver” (Drive to Survive), da Netflix, apresenta muito bem este cenário. Planejamento, reuniões, uniforme, sessão de fotos e media training são algumas das atividades que fazem parte da construção de imagem dos pilotos e suas equipes.
Há quem diga que essa preparação colocou a modalidade no modo automático, sem grandes surpresas nos enunciados. Em 2016, durante uma entrevista cronometrada, Lewis Hamilton chegou a responder ao repórter Alexandre Salvador, da Veja, sobre esse tensionamento. “Era um universo muito mais liberal. Os pilotos daquela época eram livres para falar e fazer o que quisessem. Fumar, beber, o que lhes viesse à cabeça. Hoje, somos atletas e representamos grandes corporações. Temos que ser extremamente controlados”, explicou o piloto da Mercedes.
Para entender este universo, até então nebuloso, que permeia os bastidores da Fórmula 1, nada melhor do que conversar com quem frequenta os paddocks dos autódromos desde a década de 1970. Após 40 anos de Rede Globo, o experiente jornalista Reginaldo Leme, agora na Band, fala com exclusividade sobre as curiosidades do ambiente comunicacional que envolve a principal competição de automobilismo do mundo.
Para conseguir uma entrevista, por exemplo, os repórteres passam por uma série de procedimentos o que, segundo Regi, como é chamado pelos amigos, “dá um trabalho enorme”, a começar pela avaliação feita pelas assessorias. “Tem que ser feita uma solicitação para a assessoria de imprensa, que vai, certamente, selecionar por importância do veículo, pelo nome de um jornalista mais conhecido e respeitado”, diz. “Costumamos chamar essas funcionárias de ‘desassessoras de imprensa’, pois prejudicam a relação dos pilotos com a mídia e até com os fãs”, prossegue.
Para ilustrar, Leme recordou de uma situação desagradável que aconteceu com dois fãs mirins. “Dois garotos de no máximo oito anos, vestidos com a camisa do Hamilton e quando ele (piloto) passou, a assessora o puxou para o lado e ele nem sequer viu os garotos”, explica. Mas a história teve um final um feliz. “Por coincidência, na mesa do lado havia uma funcionária da Ferrari, que avistou os garotos, subiu ao quarto e trouxe dois bonés da Ferrari. Para quem vocês acham que esses meninos vão torcer para toda vida?”, complementa.
Outra situação mostra a dificuldade dos jornalistas em terem acesso a informações que fujam do media training dos pilotos, como a vida fora das pistas, por exemplo. Regi lembrou de um episódio que aconteceu durante um Grande Prêmio (GP) do Brasil. Na ocasião, ficou combinado que ele teria um determinado tempo com os pilotos Hamilton, Charles Lecrerc e Daniel Ricciardo, por questões contratuais com empresas multinacionais com sede no Brasil. Numa dessas oportunidades, como de praxe, enviou as perguntas com antecedência, mesmo sabendo que a entrevista poderia seguir um rumo diferente — o que de fato aconteceu.
“Desta vez era com o Lecrerc (Ferrari) e eu preferi falar em italiano, que eu falo muito bem, e ele entrou totalmente na vibe. Estava falando da infância, juventude, da vida fora das pistas, numa boa, até que eu vi a assessoria agitada querendo interromper, segundo ela, porque eu tinha fugido das perguntas enviadas”. Ao perceber a inquietação da assessora, Leme interrompeu a entrevista imediatamente, agradeceu ao piloto e se retirou da sala.
Para o jornalista, o que salva hoje em dia são as entrevistas logo após o treino ou a corrida, no espaço que os jornalistas chamam de “cercadinho”. “Cada piloto é obrigado a passar por lá e falar com as pessoas que estão do lado de fora. No caso das TVs, são duas ou três perguntas personalizadas”. Como esses momentos são ao vivo, as assessoras podem acompanhar, mas não podem interromper.
No GP do Bahrein, que marcou a volta da Fórmula 1 aos canais do Grupo Bandeirantes de Comunicação após 41 anos, a entrevista de Lewis Hamilton à jornalista Mariana Becker chamou a atenção da imprensa e foi destaque nas redes sociais justamente por mostrar a relação de respeito entre os profissionais. Ali, no cercadinho, o britânico foi um show de simpatia e empatia antes mesmo de iniciar as perguntas. “Feliz em ver você também. Como estão as coisas no Brasil?”, perguntou à repórter. “Eu ia dizer bem, mas estamos passando…”, respondeu Mariana. “Eu realmente quero ir ao Brasil este ano. Eu estou falando sobre ir para lá em algum feriado há algum tempo”, finalizou o piloto da Mercedes.
Questionado sobre a espontaneidade de Lewis Hamilton, Regi fez questão de confirmar: “é natural e faz a diferença, mas além disso, ele é muito inteligente e tem sensibilidade para perceber aonde o repórter quer chegar, busca respostas positivas, rápidas e pontuadas”. Para o jornalista, existem outros pilotos iguais ou que querem ser iguais. “O Max Verstappen (Red Bull Racing) não era simpático nos primeiros anos de carreira. Com seu tipo meio arrogante, ele tratava todo mundo de uma forma seca, e isso vem mudando desde o ano passado”.
Reginaldo Leme também coleciona grande amizades que ultrapassaram as barreiras do automobilismo, uma delas foi com o tricampeão mundial Ayrton Senna. Se essa amizade seria possível no cenário atual, o jornalista respondeu. “Ah sim, amizade entre jornalistas e piloto de um mesmo país sempre será possível, embora essa condição não seja essencial. Muitos são amigos sem ser de um mesmo país”.
Regi também revelou que Senna era um profissional preparado para os holofotes da imprensa. “O Senna era um cara muito bem treinado para as entrevistas, ele sabia dar inflexão nos momentos certos e criar pontos de corte sem saber o tempo que iria ao ar”.
Confira, abaixo, a galeria de imagens da carreira de Reginaldo Leme:
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