A realidade do Afeganistão está mostrando que a polarização política em torno de temas domésticos parece ter tirado a inteligência e a cultura das pessoas ao redor do mundo. Isso inclui boa parte do jornalismo, que retratou melhor a guerra e o país há 20 anos, quando os americanos foram pra lá, depois do 11 de setembro, do que faz agora.
Tenho a clara impressão que houve uma perda de conhecimento sobre questões internacionais. O mundinho à volta dominou a cena. As fronteiras ultrapassadas foram as das redes sociais e só. Mas o mundo não diminuiu de tamanho, tampouco conflitos com razões seculares deixaram de existir.
O Afeganistão continua sendo o maior desafio geopolítico da humanidade, que desafia potências ao longo de séculos, cuja complexidade é imensa, mas vinte anos de história deveriam fazer melhorar a compreensão e a cobertura, não piorar. Daí, notam-se leituras rasas, compreensões minúsculas e completa ausência de sensibilidade histórica sobre qualquer coisa que não seja a polêmica ou a lacração da esquina.
O Talibã não é um grupo, nem se transformou em um movimento que prega uma revolução de ascensão social. O Talibã continua despótico, sangrento e que, sob um argumento mal remendado de crenças religiosas, oprime mulheres e alicia crianças, além de usar métodos de séculos atrás para lidar com opositores, coisa que a multidão de desesperados tentando se agarrar a aviões em movimento mostrou ao mundo sem dó.
Nos quase 20 anos de governo anti-talibã, eles não deixaram de existir e continuam alimentando a chama histórica da resistência aos estrangeiros. Bebem na fonte quase poética da compreensível soberania nacional dos heróis Mujahedins, mas a ideologia hoje é opressora internamente e os métodos são o que chamaríamos deste lado do planeta de feudais. O Talibã desconsidera a evolução mundial, os tempos, mas este argumento do orgulho nacional ainda povoa e convence mentes, mesmo não talibãs.
O avanço recente do grupo no país se apoia no uso da força desproporcional, na violência, mas também nessa simpatia pela soberania que prega, em que pesem seus métodos.
Uma análise cuidadosa da história mostra que o Ocidente sempre teve problemas em compreender e lidar com essas culturas.
Por razões assim, o simplismo de Joe Biden não pode ser levado a sério diante de problemas complexos, embora seja compreensível entender que os americanos não queiram ficar lá para sempre. Mas alegar que os EUA não foram para o Afeganistão reconstruir uma nação, como o presidente democrata fez em seu comunicado ao defender a retirada dos soldados, é meia verdade. À época, como sempre fez, os EUA foram destituir o governo dos talibãs e impor uma democracia quase que nos moldes ocidentais. Foram, sim, tentar – porque não conseguiram – criar uma nova nação com um novo governo aliado a Washington.
O avanço recente do grupo no país se apoia no uso da força desproporcional, na violência, mas também nessa simpatia pela soberania que prega
Tentaram, em algum momento, replicar a experiência bem-sucedida com os países do Eixo, depois de vencerem a Segunda Guerra Mundial. E mesmo estando o Japão no extremo oriente, conseguiram por lá também. Nem a Alemanha nem os japoneses se insurgiram contra Washington depois de 1945.
Na Coreia, a Guerra Fria impôs um desafio novo e acabou dividida. Militarmente, o método deu errado no Vietnã também, anos depois. No Afeganistão, embora tenha até instituído um novo governo e enfraquecido o inimigo, com avanços para a unidade do país, bastou o cordão umbilical da segurança e do dinheiro americano ser cortado e o Talibã retomou o poder.
Escrevi dia desses que depois da pandemia, de pautas identitárias e projetos econômicos internos dentro dos Estados Unidos, o Afeganistão estava esperando Joe Biden tomar posse como xerife do mundo. Cargo que o Tio Sam pariu. Então, que o embale.
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