A Folha de S.Paulo, um dos maiores jornais do Brasil e prestes a completar 101 anos, passa por “inédita crise”, segundo seu próprio ombudsman. O jornal tem sido questionado por parte de seus leitores e sua equipe pela suposta “publicação recorrente de conteúdos racistas” – segundo escreveram cerca de 200 de seus jornalistas em carta aberta à direção da Folha. Apoiado por alguns de seus colunistas e leitores, o jornal refuta a acusação e ressalta seu compromisso com “a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão”.
A controvérsia acontece em meio a iniciativas da Folha nos últimos anos para aumentar a diversidade étnico-racial de sua equipe e em seu conteúdo, como a criação da editoria de Diversidade e do programa de treinamento para profissionais negros. E levanta críticas de jornalistas e pesquisadoras sobre a percepção do jornal sobre racismo e sobre seu papel na perpetuação ou no combate da principal chaga da sociedade brasileira.
Flavia Lima, editora de Diversidade da Folha, falou à LatAm Journalism Review (LJR) sobre o episódio. Para ela, o debate instaurado após a publicação de um artigo do antropólogo Antonio Risério, no dia 15 de janeiro, é “um marco importante no sentido de levantar questões bastante pertinentes no debate público: o que é racismo e qual a importância desse conceito em uma sociedade como a nossa? O conceito de liberdade de expressão aceita tudo?”
Já a carta aberta dos jornalistas “chama ao diálogo”, acredita ela.
“É um convite à discussão sobre racismo e também sobre o próprio jornalismo, à medida que propõe uma reflexão mais ampla sobre os critérios editoriais que levam jornais a publicar um texto como o de Antonio Risério, que se distancia da crítica amparada em argumentação consistente e apresenta um conceito, ‘racismo reverso’, que não encontra respaldo nos debates que vêm sendo feitos pela academia sobre as questões raciais, tampouco nos dados sociais e econômicos colhidos pelas instituições de pesquisa. Nesse processo, critérios editoriais podem ser repensados e fortalecidos”, disse Lima.
No dia 15 de janeiro, a Folha publicou o artigo de Risério intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”. No texto, o antropólogo cita o livro “Coloring the News: How Political Correctness Has Corrupted American Journalism” (“Colorindo as notícias: como o politicamente correto corrompeu o jornalismo norte-americano”, em tradução livre), do jornalista norte-americano William McGowan, publicado nos Estados Unidos em 2001.
No livro, segundo uma resenha do site Publishers Weekly, McGowan “apresenta caso atrás de caso nos quais, ele sustenta, repórteres e editores relataram histórias erroneamente ou ignoraram temas dignos de cobertura por causa de suas ideologias liberais e seu medo de ofender afro-americanos, gays ou feministas”.
No artigo publicado na Folha, Risério elenca alguns dos casos citados por McGowan, ocorridos nos Estados Unidos nos anos 1990, para afirmar, entre outras coisas, que “quem quer que observe a cena racial do mundo vê que o racismo negro [contra brancos] é um fato”. Ele critica o que chama de “‘double standard’ midiático”, pois “a recusa em reconhecer a realidade do racismo antibranco é particularmente evidente na cobertura midiática de crimes de pretos contra brancos”.
No mesmo dia, pessoas em redes sociais responderam ao artigo afirmando que “racismo reverso não existe” e criticando a Folha pela publicação do texto. Nos dias seguintes, vários colunistas da Folha repercutiram o artigo e o debate nas redes sociais, tanto condenando quanto defendendo o jornal e o texto do antropólogo.
“O problema do texto de Risério não é ele ser polêmico (não se preocupem, temos estâmina o suficiente para aguentar); o problema é que esta Folha aceitou alçar a página inteira um texto que reproduz teorias supremacistas que, até ontem, apenas habitavam os porões da internet”, escreveu o advogado e colunista da Folha Thiago Amparo.
Já o colunista Hélio Schwartsman, que já foi editor de Opinião no jornal, escreveu: “Fico feliz que a Folha, apesar das patrulhas externa e interna, não tenha renunciado a tentar promover o debate de assuntos que estão se tornando tabu.”
No dia 19 de janeiro, cerca de 200 jornalistas da Folha divulgaram uma carta aberta à direção do jornal, em uma iniciativa pouco usual no jornalismo brasileiro. Dirigindo-se à Secretaria de Redação e ao Conselho Editorial da Folha, eles expressaram “preocupação com a publicação recorrente de conteúdos racistas nas páginas do jornal”, citando outros textos além do artigo de Risério.
Eles disseram reconhecer “o pluralismo que está na base dos princípios editoriais da Folha e a defesa que nela se faz da liberdade de expressão”; no entanto, “estes não se dissociam de outros valores que o jornalismo deve defender, como a verdade e o respeito à dignidade humana”.
“A Folha não costuma publicar conteúdos que relativizam o Holocausto, nem dá voz a apologistas da ditadura, terraplanistas e representantes do movimento antivacina. Por que, então, a prática seria outra quando o tema é o racismo no Brasil?”, questionam os signatários da carta.
A Folha respondeu no mesmo dia à manifestação de seus jornalistas. Sérgio Dávila, diretor de redação, disse que “são saudáveis a crítica e a autocrítica, desde sempre estimuladas pelo jornal”.
“O preocupante é o teor do texto [dos jornalistas], que vai contra um dos pontos basilares e inegociáveis do Projeto Folha: a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão”, afirmou, sustentando que, “além disso, o texto erra, é parcial e faz acusações sem fundamento, três características indesejáveis em se tratando de profissionais do jornalismo”.
A Folha seguirá fazendo o jornalismo que a consagrou nos últimos 100 anos, com uma Redação que esteja disposta a implementar com profissionalismo os princípios defendidos por seu Projeto Editorial: um jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista”, encerrou Dávila.
A iniciativa dos jornalistas e a resposta da Folha também foram repercutidas nas páginas do jornal por seus colunistas. Cristina Serra escreveu que a carta “já nasce histórica” e “propõe um debate necessário e fecundo, que ultrapassa as fronteiras do jornalismo”.
“Os 200 jornalistas da Folha ousaram botar o dedo na ferida, fazendo-o por meio de uma carta ponderada e de clareza solar. Devem ser elogiados por isso, não atacados. Sua coragem está à altura do momento histórico que atravessamos e dignifica a luta dos jornalistas por um país mais justo”, afirmou ela.
Jânio de Freitas, que escreve no jornal há 40 anos, celebrou “a turbulência decorrente” do artigo de Risério, que ele considera que “fará bem aos leitores” da Folha. “E fez um bem incalculável ao jornalismo brasileiro: o manifesto com cerca de 200 signatários da Folha, questionando os espaços dados a posições racistas e outras de semelhante indignidade, as escolhas de colaboradores de vezo antidemocrático, já é um marco”, considerou Freitas.
“Os manifestantes vêm dizer que são jornalistas com vida, são gente, não são robôs. São pessoas, são jornalistas que querem jornalismo. E querem a Folha viva como Folha. Sua atitude lúcida e corajosa é um despertar luminoso”, concluiu o colunista.
A jornalista e pesquisadora Yasmin Santos, autora de uma pesquisa sobre jornalistas negros em jornais impressos, ecoa críticas de especialistas em relações raciais no Brasil ao apontar que o artigo de Risério, pivô do debate atual, apresenta uma conceituação de racismo que destoa das evidências acumuladas pelas Ciências Sociais e Humanas no país.
Risério “toma o racismo como uma mera ofensa, e não como uma estrutura de poder”, disse Santos à LJR. “Esse tipo de argumentação, sem ter uma bibliografia, um contexto que a fundamente, pode ser considerado negacionismo científico. Há inúmeras evidências no campo das Ciências Humanas e Sociais que mostram que o racismo não é uma mera ofensa de um indivíduo contra outro indivíduo, ou de um pequeno grupo contra outro grupo. É uma estrutura, é algo que estruturou a sociedade brasileira.”
Para ela, “é muito preocupante” não apenas que a Folha tenha publicado o texto, mas também o destaque dado ao texto no papel, já que ele ocupou uma página inteira do suplemento Ilustríssima. “Não só a publicação, mas o destaque que se dá a esse tipo de conteúdo faz com que a gente repense o que a Folha está querendo dizer quando diz que é ‘um jornal a serviço da democracia’”, comentou ela, citando o slogan do veículo.
A pesquisadora Liv Sovik, professora da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudiosa da branquitude e das relações raciais no Brasil, disse à LJR que o artigo de Risério “não é opinião, é violência simbólica disfarçada de conhecimento”.
Se o jornalismo da Folha ainda tem compromisso com a publicação de algo parecido com uma verdade, o artigo incomoda”, pois “está repleto de mentiras e distorções, algumas muito grosseiras, que um editor não poderia deixar passar”, disse Sovik.
Entre estas, segundo ela, estaria a afirmação de que “o Black Lives Matter pede a morte dos judeus em manifestações públicas”, conforme escreveu o antropólogo sobre o movimento social criado nos Estados Unidos em 2013 em resposta aos assassinatos de pessoas negras por policiais. “Alguém achou, no texto de Risério, uma citação de alguém do BLM que tomou posição ou falou algo antissemita?”, questionou Sovik.
“Não consigo levar a sério o que Risério diz ser argumento. Quando me dizem que há algo a resgatar, alguma verdade escamoteada no texto de Risério, não concordo”, disse a pesquisadora.
Para Lima, editora de Diversidade da Folha, as críticas ao jornal pela publicação do artigo “não buscam obliterar o debate, mas qualificá-lo”. Ela cita trechos de textos do historiador Petrônio Domingues e do grupo Judeus pela Democracia, ambos publicados pela Folha em resposta ao artigo de Risério, como exemplos de críticas que qualificam o debate ao definir racismo como “estrutura social que confere privilégios e desvantagens com base na ideia de raça, e não se confunde com atos de preconceito ou discriminação”.
“A defesa da liberdade de expressão deve ser feita com firmeza, mas ela não é incompatível com a constatação de que os jornais não acolhem tudo: escolhas são feitas diariamente”, disse Lima. “Também sabemos que a liberdade de expressão não nos dispensa, como jornalistas, de compreender a relevância daquilo que entregamos ao leitor, do espírito crítico e do compromisso com os fatos.”
Lima ressaltou que a Folha “tem feito esforços bastante importantes no sentido de tornar a sua Redação e seu elenco de colunistas e blogueiros mais plurais, assim como as fontes ouvidas para a elaboração do conteúdo entregue ao leitor e à leitora”.
Entre estes esforços estão a editoria de Diversidade, da qual Lima é titular e que foi criada em 2019, e o Programa de Treinamento em Jornalismo Diário exclusivo para profissionais negros, realizado pela primeira vez em 2021 e que teria levado à contratação de pelo menos 12 jornalistas negros, conforme reportado pela LJR em setembro.
A editora inclusive credita às transformações provocadas na Folha por essas iniciativas a tomada de posição de seus mais de 200 jornalistas na carta aberta à direção do jornal. “Não acho que a carta dos profissionais encubra esses esforços, mas, antes, é resultado deles”, afirmou ela.
Santos disse ver “com muito bons olhos” tais iniciativas, mas expressou preocupação por não conseguir “visualizar no momento uma mudança estrutural do veículo rumo a esse propósito de ser ‘a serviço da democracia’, de ser um jornal que não compactua com qualquer tipo de discriminação”.
“Sei que ao longo desse caminho a Folha vai errar, e não só a Folha, como também diversos outros veículos. Mas é [importante] errar entendendo que errou e aprender com esse erro”, disse Santos, que considera “preocupante” a resposta da direção do jornal à carta aberta assinada pelos jornalistas.
É necessário um posicionamento estrutural que passe por todas as instâncias do veículo. Se a Folha não tem isso agora, ela precisa demonstrar que está caminhando nesse sentido”, avalia a jornalista.
Segundo Lima, o jornal também está tomando medidas para tratar da “inédita crise” provocada pela publicação do artigo de Risério. Entre elas estão “a proposta de criar um comitê, encabeçado pela editoria de Diversidade, de jornalistas negros e não negros da Redação para ouvir as demandas e encaminhá-las; a organização de seminários internos sobre pluralismo e liberdade de expressão, assim como de seminários sobre a questão racial; e a retomada de encontros da direção da Redação com as editorias do jornal, ampliando canais de comunicação”.
Além disso, segundo ela, a Folha “fará a segunda edição do programa de treinamento voltado para profissionais negros em 2022 ao lado de outros programas de treinamento; vem ampliando as discussões sobre racismo e outras formas de arbitrariedade e violência, e o debate sobre pluralismo e liberdade de expressão”.
“Vejo tudo isso como um processo, um movimento orgânico que não começou agora nem terminará amanhã”, disse Lima.
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