O caso da Escola Base entrou para a história como uma das páginas mais tristes do jornalismo brasileiro e durante muitos anos foi usado como exemplo do que não fazer
Nos anos 1990, um delegado de polícia de São Paulo chamou a imprensa para revelar um escândalo: havia uma escola infantil abusando sexualmente das crianças que ali estudavam. Os abusadores eram os próprios donos da escola. Eles foram apresentados com estardalhaço pelos policiais, como culpados, e julgados pela imprensa e opinião pública. Até que, alguns meses depois, a Justiça concluiu que os relatos das crianças não passavam de fantasia infantil, não havia abuso e os “monstros” da Escola Base foram inocentados. Mas aí já tinham perdido a escola – e a paz para andar livremente pelas ruas da cidade.
A imprensa não inventou as acusações levianas, mas reproduziu, com estridência e sem questionar, a versão fantasiosa da polícia. Vários veículos foram processados, e hoje o caso é lembrando pela papel irresponsável desempenhado pela imprensa. O caso da Escola Base entrou para a história como uma das páginas mais tristes do jornalismo brasileiro e durante muitos anos foi usado como exemplo do que não fazer.
Vários casos recentes revelam, no entanto, que estamos mais próximos de um novo escândalo desse tipo do que seria desejável. A coluna da ombudsman da Folha de S. Paulo do dia 19 de março mostra como se produziu o vazamento em massa de parte da lista entregue pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Os procuradores da PGR simplesmente chamaram os jornalistas, mostraram alguns nomes e pediram que a fonte fosse mantida em sigilo. A divulgação de inquéritos ou investigações mantidos em segredo se justifica pelo interesse público. Mas o interesse público obriga à divulgação total do documento, ou pelo menos da parte selecionada pelo jornalista como sendo de interesse público. Neste caso, a imprensa foi simplesmente usada pelos procuradores. E aceitou fazer parte do jogo.
Há outros casos além da Escola Base. O que trará mais prejuízo ao país (não ao governo, mas à economia e, portanto, aos empregos dos brasileiros) é a espetacularização da operação Carne Fraca, da Polícia Federal. Numa situação que lembra o famoso Power Point sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentado pelos procuradores de Curitiba, policiais federais fizeram acusações na coletiva que não sustentam no documento oficial. Generalizam como sendo prática de todo o mercado situações que comprovaram em apenas determinada empresa. Espalham o pânico em busca de holofotes, para talvez entrar na história como artífices da “maior operação já realizada pela Polícia Federal”. Poderiam também ter primado pela eficiência e limitado o falatório informações às provas. Ouvir uma referência a embalagem de papelão e inferir que o material estaria não na embalagem mas dentro do produto é de um amadorismo surpreendente.
O problema seria apenas da PF se o jornalismo não tivesse embarcado, de tíquete na mão, na canoa furada pilotada pelas autoridades policiais. Dos dois lados. De um, a grande imprensa comprando a versão oferecida por uma entrevista que não explicava nada direito e tomava a parte pelo todo, ajudando a levar o pânico à população e a formar a opinião lá fora de que no Brasil nada presta mesmo. De outro lado uma reação ainda pior, especialmente nos blogs ditos de esquerda, talvez se sentindo na obrigação de defender os investimentos bilionários feitos pelo BNDES nessas empesas nos últimos anos – caso dos vídeos de O Cafezinho, com uma defesa pueril e quase chorosa de uma marca de carnes. Somente hoje, passado o susto e diante do imenso prejuízo à imagem e aos negócios do Brasil, é que a imprensa passou a olhar de maneira crítica as afirmações da polícia.
Alguém poderia argumentar que a imprensa não cria os fatos, apenas os reporta. Isso é verdade apenas em parte. Jornalistas, como pessoas com acesso privilegiado a fontes de informação, têm compromisso com a sociedade (seus leitores, ouvintes, telespectadores, internautas) e obrigação de fazer as perguntas que seu público não tem condições de fazer. Abrir mão dessa prerrogativa é abrir mão de sua função social. Se continuarmos a negligenciar isso, seremos cada vez mais merecedores da baixa credibilidade atribuída hoje à imprensa. O prejuízo é de toda a sociedade. Mas cabe a nós, jornalistas, evitar que isso aconteça.
Em meio a tantas ameaças ao jornalismo, surgiu no domingo à noite um exemplo positivo no jornal O Estado de S. Paulo. Ao ver sua matéria informando que a churrascaria onde o presidente Michel Temer levou a comitiva de embaixadores servia carne importada questionada, não recuou: manteve a informação original e aprimorou o texto com detalhes da apuração. Só pôde fazer isso porque tinha segurança do que escreveu. Nem tudo está perdido no jornalismo brasileiro.
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Denize Bacoccina. Jornalista, trabalhou em O Estado de S. Paulo, BBC, revista Istoé Dinheiro e EBC. Foi correspondente em Londres e Washington e superintendente-executiva de agências e conteúdo figital da EBC.
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