“Sou médico, não juiz”. Dessa forma, o Dr. Dráuzio Varella encerra a “nota de esclarecimento” sobre o seu trabalho à frente da reportagem do ‘Fantástico’, que no dia 1º de março veiculou reportagem mostrando a situação de presidiárias trans que cumprem penas em detenções masculinas. Uma das entrevistadas foi Suzy, que recebeu um abraço do colaborador do programa da Rede Globo após informar que estava havia oito anos sem receber visitas. O caso comoveu internautas, que fizeram campanhas para encaminhar cartas e presentes à condenada. Sabe-se agora, porém, que informações foram omitidas pela emissora.
Reportagem do site O Antagonista revelou que Suzy foi presa por estuprar e assassinar um garoto de nove anos. A notícia fez com que, além de Dráuzio Varella por meio de nota divulgada na internet, o próprio ‘Fantástico’ voltasse a abordar — de forma bem tímida — o assunto. Breve texto lido pelos apresentadores Tadeu Schmidt e Poliana Abritta chancelou o posicionamento divulgado pelo médico-repórter. Levou, ainda, informação imprecisa aos telespectadores ao falar que os crimes não foram divulgados na ocasião “porque este não era o objetivo” da reportagem.
Mentira! Off do próprio Dráuzio Varella avisa, na matéria exibida há uma semana, que uma das personagens entrevistadas, chamada Lola, estava cumprindo pena por roubo. Sobre Suzy, que pela edição feita pelo ‘Fantástico’ (com direito a exibição do abraço dado pelo entrevistador) se tornou protagonista da pauta, o público não teve a oportunidade de saber que ela está detida em decorrência de ter assassinado uma criança “mediante meio cruel, consistente em asfixia, e se valendo de recurso que impossibilitou a defesa da vítima”. Logo, a equipe da atração da Rede Globo omitiu informações.
Dráuzio Varella é um ser humano incrível. E seu abraço em Suzy, vale registrar, é um ato nobre, independentemente da condição condenatória da figura abraçada. É um ato de grandeza e bondade. Um ato de humanidade. Dráuzio, como é de conhecimento comum, não é juiz. É médico. O ‘Fantástico’, porém, não é mero espaço para se televisionar consultas e momentos de comoção entre doutor e paciente. É um produto que pertence ao departamento de jornalismo do maior conglomerado de mídia do Brasil.
Por tal condição, é possível afirmar que a reportagem exibida pelo ‘Fantástico’ foi contra orientações descritas nos ‘Princípios Editoriais do Grupo Globo’. “Todos os jornalistas envolvidos na apuração, edição e publicação de uma reportagem, em qualquer nível hierárquico, devem se esforçar ao máximo para deixar de lado suas idiossincrasias e gostos pessoais. Gostar ou não de um assunto ou personagem não é critério para que algo seja ou não publicado. O critério é ser notícia”, descreve o item F da parte de isenção do documento. Difícil imaginar que para toda uma equipe assassinato e estupro não entrem no critério de notícia.
Em outro ponto, o B de como os veículos do conglomerado devem se posicionar “diante do público”, o guia registra que “para o Grupo Globo, todo público tem um alto poder de discernimento e entendimento”. Segundo o documento divulgado pela empresa de comunicação, “o menos culto dos homens é capaz de decidir o que é melhor para si, escolhe visando à qualidade e entende tudo o que lhe é relatado de forma competente”.
No caso da matéria em questão, os responsáveis aparentemente avaliaram que o telespectador não teria discernimento para lidar com informações sobre assassinato e estupro cometidos por uma mulher trans. O ‘Fantástico’ optou por omitir informações. E isso não é um problema em relação à atuação de um médico, de um juiz ou de um comunicador que abraça uma entrevistada. É problema jornalístico, que parece não ter a hombridade de reconhecer erros e pedir desculpas. Afinal, um programa jornalístico não teve o “objetivo” de revelar a prática de crimes.
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