Sempre que dou palestrar sobre minha carreira no jornalismo esportivo e abro para ouvir as perguntas, a primeira é sempre a mesma. “Você já sofreu preconceito por ser mulher?”. A resposta, desde que comecei a frequentar treinos e jogos, também é a mesma: “sim”.
É claro que isso vem mudando, mas ainda não dá para dizer que não existe mais. Sinceramente, não sei se algum dia o diremos. No ano passado, vimos o movimento #Deixaelatrabalhar, que abriu os olhos de muita gente para o que sempre aconteceu nos bastidores do mundo da bola. Mas, como tudo no Brasil, passou. As cantadas e os desrespeitos, porém, não passaram.
Quando comecei a cobrir futebol, ainda na década de 1990, as mulheres não representavam nem 1% dos jornalistas desta área. Não existia sala de imprensa, onde hoje são realizadas as coletivas pós-jogo. Os repórteres literalmente invadiam os vestiários, com os jogadores tomando banho, trocando de roupa, e dando entrevista ao mesmo tempo.
Minha primeira experiência foi traumática. A missão era entrevistar o Romário, que não tinha sido convocado para a seleção brasileira. Entrei no vestiário do Flamengo junto com todos OS repórteres e sentei num banco. O Baixinho estava fazendo massagem e, quando notou que havia uma mulher ali, deixou a toalha cair “sem querer”. Imediatamente, olhei para baixo, sem saber o que fazer. Ele foi para o chuveiro e lá mesmo, embaixo d´água, foi respondendo às perguntas. Claro que fiquei de fora, outro repórter gentilmente segurou o microfone para mim.
Depois de um ano na Band Rio, fui para Fortaleza, para a TV Verdes Mares, afiliada da TV Globo no Ceará. Assim que cheguei, demonstrei minha vontade de ir para o esporte. Fiz um teste para apresentar o ‘Globo Esporte’ local e o diretor na época, Roberto Prado, gostou muito. Conclusão: no sábado seguinte estava lá apresentando. A partir de então, mergulhei fundo no meio do futebol. Comecei a cobrir o dia a dia dos times cearenses e a participar das transmissões do Campeonato do Nordeste. Tenho orgulho de dizer que fui a primeira mulher a fazer reportagem de campo no Ceará.
Por incrível que pareça, a receptividade dos cearenses foi a melhor possível. Frequentemente, eu era parada na farmácia ou no meio da rua por um torcedor para falar sobre os times. No estádio, o carinho comigo era grande. Sempre ouvia um coro: “Aline, cadê você, eu vim aqui só para te ver”. Não posso reclamar.
Quando voltei para o Rio de Janeiro, em 2001, demorei a conseguir um emprego na área esportiva. Na Band mesmo fui várias vezes e ouvia o mesmo discurso: “não contratamos mulher para o esporte” (na época em que trabalhei lá eu era estagiária). Acabei tendo que fazer geral mesmo (cobrir matérias de cidade). Somente em 2007 consegui finalmente voltar a falar do que mais gosto, no SBT Rio.
Quando comecei a frequentar os treinos, a situação era a mesma de anos antes – só tinha eu de mulher. Os homens me olhavam desconfiados, nem conversavam comigo. Quando eu fazia alguma pergunta na coletiva sentia que eles ficavam comentando, como se uma mulher não fosse capaz de perguntar algo inteligente.
Ao longo dos anos, fui ganhando o respeito dos coleguinhas, mas não dos jogadores, assessores e técnicos. Como eu cobria os jogos em todo o país, viajava muito, e não era raro receber mensagens com convites para sair ou mesmo cantadas bem baixo nível pelo celular. Os próprios assessores passavam meu telefone para quem pedisse. Teve uma vez que eu estava sendo tão assediada num determinado clube que implorei para os meus chefes para não me mandarem lá. Era só eu falar para o assessor: “preciso de uma entrevista com Fulano de Tal”, e ele me perguntava: “o que eu vou ganhar em troca?” Era nojento. É nojento.
Naquela época ainda não se falava nesse tipo de assédio. Arrependo-me de não ter as mensagens salvas. Aliás, quando as lia, tratava logo de apagar, para esquecer. Cheguei a fugir de um treinador num hotel me escondendo no quarto de um colega. São histórias inacreditáveis, mas que acontecem todos os dias.
Espero que movimentos como o #Deixaelatrabalhar não caiam no esquecimento e sirvam para começar a mudar uma realidade para a qual muita gente ainda fecha os olhos.
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Por Aline Bordalo. Repórter, jornalista esportiva e escritora. Profissional de imprensa há mais de 20 anos. Além da crônica esportiva, também já lidou com as chamadas pautas gerais. Ao lado do marido, o também comunicador Alexandre Araújo, escreveu o livro infantil Onde a Coruja Dorme e Outras Histórias.
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