Depois de deixar uma manifestação de apoiadores do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, escoltado pela polícia, o repórter da CNN Pedro Duran imaginou que o pior havia passado. Afinal, havia sido agredido e xingado pelos manifestantes e sem a proteção dos policiais, a violência poderia ter escalado ainda mais.
No entanto, com a repercussão do caso nos dias seguintes ao domingo 24 de maio, o jornalista passou a sofrer um segundo tipo de ataque: o digital.
“Algumas pessoas vieram atrás de mim em outras redes sociais, como Instagram e Facebook. Não bastasse o ataque físico, teve também o virtual. Já tinha acontecido antes em outras ocasiões. Quando o ataque vem por esses meios eu sinto que tenho minha intimidade violada, porque são ambientes onde, especialmente na pandemia, tenho usado pra manter contato com minha família e amigos,” disse Duran à LatAm Journalism Review (LJR). “Não houve ameaça, porque se isso acontecesse eu procuraria a polícia imediatamente, mas xingamentos e ofensas, na maior parte por perfis apócrifos,” disse Durán.
Uma pesquisa da ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF) e do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio) mostra que as redes sociais se tornaram um território hostil para a imprensa no Brasil. Num período de três meses, entre 14 de março e 13 de junho de 2021, os pesquisadores identificaram 498.693 ataques a jornalistas e à imprensa de uma forma geral no país. Um quinto do total dos ataques veio de contas com alta probabilidade de comportamento automatizado, ou seja, robôs.
“Se você tem um usuário que não possui uma foto de perfil, é apenas um avatar. Que tem no seu handle, que é o @ do Twitter, uma série de números. Se o nome do perfil não corresponde a esse handle, e se esse usuário compartilha 200 vezes em 60 segundos. Todas essas são características que vão aumentar essa nota final deste usuário. Quanto mais próximo de 100, maior a probabilidade desse usuário ser identificado como alta probabilidade de automação,” explicou à LJR Thayane Guimarães, pesquisadora sênior do ITS.
A frequência é um peso bastante grande nessa conta do Pegabot [que mede a probabilidade de automação], justamente porque é impossível que isso seja atrelado a uma atividade autêntica humana.”
Segundo o relatório, esta automação levanta a suspeita de que os ataques a jornalistas sejam planejados e coordenados sistematicamente. No estudo, foram coletados dados de tweets com menções a um conjunto de cinco hashtags, algumas tendo como alvo veículos específicos: #imprensalixo, #extremaimprensa, #globolixo, #cnnlixo e #estadaofake. Elas foram usadas por 94.195 usuários do Twitter. Destes, 3,9% são possivelmente perfis automatizados — no entanto, eles representam 20% do volume de ataques.
“Não significa que o movimento orgânico não exista, mas quando tem um incentivo via robôs de que essas mensagens, de que esse assunto esteja muito em pauta, eles acabam também servindo de álcool, de gasolina para que mais mensagens surjam na rede a partir dos perfis reais. Existe esse impulsionamento, esse trampolim via perfis automatizados,” disse Guimarães.
A pesquisa identificou também momentos de pico de engajamento com as hashtags monitoradas associados a episódios de assédio digital contra os perfis de alguns jornalistas, como Maju Coutinho (TV Globo), Daniela Lima e Pedro Duran (CNN Brasil), Mariliz Pereira Jorge (Folha de S. Paulo), e Rodrigo Menegat (DW News).
O dia com o maior número de postagens foi 10 de maio, com 36.791 registros, na esteira da publicação da reportagem “Orçamento secreto bilionário de Bolsonaro”, no Estadão, sobre um esquema de orçamento paralelo, utilizado para liberar verbas para emendas parlamentares.
Os ataques sistemáticos à credibilidade da imprensa estão diretamente atrelados à estratégia de desinformação mobilizada pelo governo. Ao desmoralizar jornalistas e meios de comunicação apontados como críticos, o governo busca essencialmente ampliar seu controle sobre o debate público,” disse à LJR Emmanuel Colombié, chefe da Seção América Latina da Repórteres Sem Fronteiras.
Colombié disse ainda que as campanhas digitais de ataques à imprensa promovem o estigma dos jornalistas como inimigos, o que pode fazer com que a violência digital se transforme em violência física. “Em um contexto político de intensa polarização, essa ideia mobiliza o ódio de determinados grupos, transcende a esfera digital e se materializa em outros tipos de violência, de escrachos, expulsão de manifestações, ofensas em ambientes públicos e potencialmente agressões físicas,” disse.
A pesquisa identificou ainda um elemento de gênero importante no universo de ataques monitorado: a quantidade total de tweets mencionando jornalistas mulheres foi 13 vezes maior do que em relação aos seus colegas homens.
“Uma coisa que eu percebi é que esses ataques estão cada vez mais organizados, antes parecia uma coisa orgânica, mas agora eu percebo um movimento articulado, e toma uma proporção muito grande”, relatou a colunista da Folha de S. Paulo, Mariliz Pereira Jorge, aos pesquisadores.
Um ponto muito relevante do relatório é justamente essa expressão da misoginia e da violência de gênero online. Isso é algo que a gente vem tentando monitorar há bastante tempo. Essa relação de liberdade de expressão e, especificamente, em relação a jornalistas mulheres, e esse movimento de bots. Isso é central dentro da nossa pesquisa, perceber o quanto que não só a imprensa de uma forma geral é considerada uma inimiga do governo federal, a ponto de motivar essas mobilizações, como também essas mulheres nesse lugar de poder de fala, de construção de análise política, etc.”
disse Guimarães.
De acordo com Colombié, pela própria natureza da atividade que exercem, os jornalistas atuam com um alto grau de exposição, ainda que a grande maioria não tenha um status de figura pública. E, segundo ele, essa exposição pode ser facilmente utilizada por grupos para promover algum tipo de retaliação ou intimidação:
“Quando alvo de um ataque, jornalistas podem e devem buscar todo tipo de apoio, começando pelo próprio meio de comunicação, seus editores, colegas; mas também de advogados, sindicatos e toda a comunidade de organizações da sociedade civil que está mobilizada em defesa da liberdade de imprensa. A construção de uma rede de apoio com capacidade de trazer formas de atravessar tais situações é uma das principais estratégias para atravessar essas situações.”
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