Pelo tratamento dado à imprensa, Bolsonaro age como um ditador

“O fato é que as entidades representativas das empresas de comunicação têm se calado diante dos atos alarmantes do governo Bolsonaro contra o jornalismo profissional e a imprensa livre”. Portal Comunique-se publica artigo do jornalista Rafael Mesquita

Ainda na escola, aprendemos que existem critérios básicos para se definir uma democracia, como mídia livre; justiça independente, pluripartidarismo e liberdade de expressão e de opinião. O Brasil, indiscutivelmente, atravessa mais um período em que os preceitos democráticos estão sendo colocados em xeque pelas próprias instituições. É o caso do Poder Executivo, onde o novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, já começa o mandato atacando, até agora, pelo menos dois destes fundamentos.

Só nos primeiros dias de gestão, o mandatário protagonizou tentativas de cerceamento da liberdade de imprensa e expressão, começando pelas restrições e humilhações impostas a jornalistas na cerimônia de posse, em primeiro de janeiro. Mais do que os ataques públicos comuns disparados quando candidato ou o veto à presença de jornalistas de determinados veículos em suas entrevistas, o presidente reservou um “dia de cão”, como classificou Mônica Bergamo, para 1.500 jornalistas. Os profissionais foram revistados pelo menos duas vezes, constrangidos a estar no local sete horas antes da posse e confinados em salas sem cadeira e sem janelas, sem alimentos e sem poder portar garrafas com água.

Houve ainda restrição de acesso a banheiro e bebedouro. Alguns classificaram como cárcere privado. Conforme relatos, a assessoria do evento deu “avisos” de que os comunicadores poderiam levar tiros se fizessem movimentos bruscos. Surreal! Equipes estrangeiras chegaram a se retirar do local diante das sujeições, classificados como sem precedentes. Enquanto isso, bajuladores profissionais, titulados como influenciadores digitais, tiveram acesso livre na maior parte do tempo e atores da “imprensa amiga” foram recebidos com confetes.

Só nos primeiros dias de gestão, o mandatário protagonizou tentativas de cerceamento da liberdade de imprensa e expressão

Avesso à fiscalização e ao contraditório, Bolsonaro deu continuidade à sua agenda restritiva ao trabalho de jornalistas no dia 3 de janeiro, mostrando como será seu “modus operandi” perante à imprensa. Na primeira reunião com ministros, o governante vetou a presença no salão de equipes de TV, jornais e sites. Como narrou a TV Globo em matéria do Jornal Hoje, “Só a imprensa oficial pôde fazer fotos e imagens na chamada ‘sala suprema’ e ainda assim sem gravar o som das conversas”, dizia a reportagem.

O curioso é que regimes que “transmitem informações” somente por veículos oficiais chegam a ser classificados como ditatoriais. Sem entrar no mérito se há democracia ou não na Venezuela, a conduta do presidente brasileiro se assemelha às vicissitudes de governantes como Hugo Chávez e Nicolás Maduro, que Jair e seus seguidores tanto criticam, ou mesmo ao autocrata português Antonio de Oliveira Salazar (28/4/1889 – 27/7/1970), que utilizou a censura e o controle ideológico como “método” de governo.

Noutra linha, como acentuou Carla Jiménez, do El País, a estratégia da nova administração é de “desestabilizar os repórteres e jornais que possam fazer críticas a sua conduta, de modo a relativizar qualquer notícia negativa”. O assédio tem partido não só do presidente, mas dos três filhos políticos: o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), verdadeiros pitbulls quando se trata de enfrentar jornalistas que exercem com qualidade o ofício. Os assédios da “dinastia” têm insuflado uma massa de seguidores nas redes sociais. Os chamados “bolsominions” estão provocado o inferno na vida de jornalistas e estimulando episódios de violência física e verbal. Junto a isso, as ameaças constantes de corte de verba publicitária governamental nos veículos de comunicação e afagos em empresários da mídia já domesticados.

“O curioso é que regimes que ‘transmitem informações’ somente por veículos oficiais chegam a ser classificados como ditatoriais”

Sem dúvidas, Bolsonaro se comporta como um ditador ao deteriorar algumas das liberdades civis básicas, como as de imprensa e de expressão. O direito à informação e à comunicação, Direito Humanos universais, são atacados quando há pressão do governo contra o jornalismo profissional e a tentativa de obstrução do trabalho de seus profissionais. Como disse contundentemente em nota a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), “o novo governo acha-se no direito de desrespeitar uma das regras essenciais das democracias: a liberdade de imprensa”, o que é intolerável.

Assim como a Fenaj, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) também repudiaram as ações do presidente, o que chama atenção para um “silêncio”, digamos, “ensurdecedor”. O fato é que as entidades representativas das empresas de comunicação têm se calado diante dos atos alarmantes do governo Bolsonaro contra o jornalismo profissional e a imprensa livre.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) não disse nada em seus veículos oficiais na internet sobre o assunto e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) segue também em absoluto silêncio. Tem sido assim até nos episódios de violência contra jornalistas praticados por partidários de Bolsonaro.

“Sem dúvidas, Bolsonaro se comporta como um ditador ao deteriorar algumas das liberdades civis básicas, como as de imprensa e de expressão”

É muito irônico o fato de durante anos estas mesmas organizações representativas do setor de mídia terem vociferado contra as propostas da sociedade civil de regulação econômica da comunicação brasileira, mas se calarem quando de fato há uma ameaça contundente à liberdade de imprensa, de opinião e de livre iniciativa da mídia. Baseada nos termos ainda não regulamentados da Constituição Federal de 1988, as medidas regulatórias se aproximariam de dispositivos comuns à maioria das potências mundiais, como Reino Unido e Estados Unidos, mas foram chamadas pela ANJ e pela Abert de censura e perseguição ideológica, verborragia só próxima a do atual presidente.

Ocorre que neste momento seria necessária uma elevação crítica do debate, que precisa ser feito não só por profissionais, mas sobretudo pelas corporações de mídia. Tá na hora do governante máximo do país descer do palanque eleitoral, mas também da nossa mídia empresarial se desocupar do discurso ideológico do dono e se desfazer do jornalismo declaratório, que, para mim, se praticado sem o devido esclarecimento, se torna a própria negação do jornalismo.

Tá na hora do governante máximo do país descer do palanque eleitoral, mas também da nossa mídia empresarial se desocupar do discurso ideológico do dono

Como disse Jânio de Freitas, em coluna na Folha de S. Paulo, “a imprensa brasileira, incluindo TV, rádio e revistas, deve assumir seu papel de defender os direitos democráticos conquistados no país ao largo de três décadas”. Para tanto, o colunista defende o fim de “vícios” e a escolha da “ética”, antes da “conveniência”, que segue praticada por inúmeros veículos e jornalistas.

Como disse Fabiana Morais, cabe ao jornalismo brasileiro desnaturalizar o inaceitável e passar a nominar as coisas e as ações com os adjetivos corretos. De acordo com a jornalista, em coluna na revista Piauí (14/10/18), “essa imprensa precisa fazer sua autocrítica”. É urgente que a nossa mídia retome o seu papel fundador de esclarecimento, de aprofundamento, de investigação e de mediação social, baseado em fatos e princípios de cidadania e coletividade. Este passo é necessário não só para encarar o julgo de um comando presidencial repressor e silenciador, mas para também a esfera pública midiática sobreviver como setor organizativo da sociedade e, na ausência de uma outra esfera crítica massiva organizada em movimentos reivindicatórios, ser a salvaguarda das nossas possibilidades de participação política e ação social.

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Por Rafael Mesquita. Jornalista, é assessor de impressa da Federação dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal do Estado do Ceará (Fetamce). Trabalhou na Câmara Municipal de Fortaleza e na Prefeitura de Fortaleza. É secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce) e diretor de educação e aperfeiçoamento profissional da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

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