Raul Brasil: o caso de muitas causas

“Sou da época em que se ensinava o outro a valorizar toda a forma de vida e o patriotismo”. Hoje jornalista, Carla Fiamini estudou na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP). Em artigo para o Portal Comunique-se, ela analisa situações relacionadas ao massacre

Ver o chão onde dei meus primeiros passos na educação manchados por sangue é inconsolável e nada crível. Na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP), estudei do 1º ao 8º ano. Aprendi, por lá, muito mais que o alfabeto, a regra de três, metonímias e história do Brasil! Por lá, me ensinaram a tolerar e a saber me posicionar de maneira coerente e respeitosa para também ser aceita e compreendida.

Sou da época em que se ensinava o outro a valorizar toda a forma de vida e o patriotismo – não pelo ódio ou pelo medo -, mas, sim, pelo respeito às instituições, à nossa família e aos nossos mestres, símbolos e insígnias, com direito à aula de educação moral e cívica, entoação do hino nacional, auto-exigência e ciência quanto a limites e responsabilidades.

Agora, as ovadas que levei na porta da escola em razão das minhas viradas de calendário deram espaço para um tiroteio, para um massacre sem precedentes. Dois jovens, talvez mais novos do que quando fui transferida do Raul Brasil para outra instituição de ensino de Suzano, para cursar o “colegial”, abriram fogo contra alunos e funcionários nas primeiras horas da manhã, e depois se mataram. Um teria sido expulso, segundo ele “injustamente” de lá, e por causa de outrem, além de ser vítima de bullying.

“Sou da época em que se ensinava o outro a valorizar toda a forma de vida e o patriotismo – não pelo ódio ou pelo medo” (Carla Fiamini)

Então, de forma premeditada, a dupla organizou a ação criminosa para destruir o que não lhe aceitava ou não o era ressonante. Pensou em cada detalhe, para fazer justiça de forma autônoma, como se doutrina nos games e nos discursos extremistas.

Antes, contudo, os assassinos postaram em redes sociais suas preferências ideológicas, idolatrias por armas, por vingança e o tal do “olho por olho, dente por dente”. Eles também curtiam músicas e jogos virtuais nada divorciados com a intolerância e a violência que pautam não de hoje o nosso dia a dia. Validação de que não são apenas novelas e minisséries que influenciam ou potencializam as fragilidades que fazem o ser humano pular do status depressivo ou de indignação para o de fúria e loucura num quase despercebido hiato.

Claro que outros fatores devem ser considerados nesta catástrofe, como a entrada sem cerimônias dos dois a uma escola (nossa casa em outra casa e que deveria ser sinônimo de segurança e de acolhimento) portando armas de fogo, arco-e-flecha e machados, além do fácil acesso que tiveram a esses artefatos, mesmo o país não tendo legislação que respalde posse ou porte livre. Também não devemos apenas frisar os possíveis incentivos conscientes e inconscientes, as referências sociológicas, e o histórico familiar e psicológico dos atiradores – que, por tudo e contudo, eram indiscutivelmente defeituosos em algum aspecto.

“Não devemos apenas frisar os possíveis incentivos conscientes e inconscientes, as referências sociológicas, e o histórico familiar e psicológico dos atiradores” (Carla Fiamini)

E, pouco importa se fosse uma faca de cortar bolo industrializado de pacote que estivesse na mochila dos “garotos”, pois a maior arma neste caso era a intenção e a certeza de que estavam em seus direitos e juízos perfeitos.

Se não pudermos mais nos sentir seguros dentro de escolas e de igrejas (não faz muito tempo, um atirador abriu fogo, graciosamente, contra fiéis no final de uma missa, na Catedral de Campinas (SP), e depois se suicidou), onde teremos essa proteção tutelada pela Constituição Federal, que é tão linda quanto a uma música de John Lennon?! Atrás da ideologia dos nossos mitos, ou de super-heróis típicos dos quadrinhos?

Suzano, nesta quarta-feira, ganhou o mundo por meio de uma história ensanguentada e manchada por revolta e inconformidade, com um saldo até o momento de dez mortos. E, o Brasil, de forma sintomática, que tanto quer se equiparar aos Estados Unidos, em moeda, turismo e tuítes, hoje importou o gosto amargo de seus sonhos descabidos, repletos de depoimentos inflamados e irresponsáveis!

“Suzano, nesta quarta-feira, ganhou o mundo por meio de uma história ensanguentada e manchada por revolta e inconformidade” (Carla Fiamini)

Resultado: hoje, sim, patrocinou-se a divisão “nós” e “eles” – “nós” assistindo quietos a insensatez se armar para fazer a justiça que ela acha cabível – afinal, cada qual a interpreta a sua maneira, assim como a fé, o futebol e a Política – e “eles” caídos, já sem vida e sem ao menos tempo para entenderem o que se passou às 9h30 dentro de uma das escolas mais tradicionais e antigas de Suzano!

E, como na enchente a culpa sempre é da chuva, está aberta a temporada da “culpa é da Internet”!

Podia ser você! Podia ser seu filho, inclusive o atirador, e não apenas a vítima! Boa reflexão para todos nós, sejamos de esquerda ou de direita, neste dia de luto. Boa reflexão para este dia em que sentimos saudade do futuro!

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Por Carla Fiamini, jornalista. Graduada em comunicação social com habilitação em jornalismo, pós-graduada em docência no ensino superior, especialista em assessoria de imprensa, com ênfase para órgãos públicos e mandatos, escritora e palestrante

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