Um grupo de jornalistas se reuniu em São Paulo para fundar um meio digital que se dedicasse exclusivamente à cobertura de segurança pública e direitos humanos no Brasil. Dali nasceu a Ponte Jornalismo
Por Carolina de Assis. Texto publicado originalmente no site do Knight Center for Journalism in the Americas
Em março de 2014, um grupo de jornalistas se reuniu em São Paulo para fundar um meio digital que se dedicasse exclusivamente à cobertura de segurança pública e direitos humanos no Brasil. Dali nasceu a Ponte Jornalismo, que desde então se tornou referência no tema no país. Cinco anos depois, o site busca consolidar sua operação de maneira mais sustentável para continuar fazendo jornalismo de impacto.
No país com a terceira maior população carcerária do mundo (40% dela formada por presos provisórios, sem condenação judicial) e onde a polícia matou em média 16 pessoas por dia em 2018, a Ponte devota especial atenção à violência estatal. Esta é “a grande história do Brasil”, segundo Fausto Salvadori, cofundador e editor do site.
“Não se pode falar do Brasil no século 21 sem falar da violência do Estado, que é absurda. É como se a gente estivesse na África do Sul nos anos 1980 e não falasse de apartheid, ou na Alemanha dos anos 1940 e não falasse dos campos de concentração”, disse ele ao Knight Center for Journalism in the Americas. “A Ponte surgiu dessa ideia de que existe uma realidade absurda e as pessoas não estão falando disso, elas ignoram esses fatos, e isso precisa ser trazido para o centro do debate”.
A Ponte se propôs então a fazer jornalismo sobre segurança pública de maneira distinta do que era então chamado de “jornalismo policial”. “Não à toa se chamava jornalismo policial, pois muito desse jornalismo era unha e carne com a polícia”, comentou ele. “Parte significativa dessa cobertura é tradicionalmente feita por jornalistas que correm muito junto com a polícia e que se confundem numa relação de jornalista e relações públicas da polícia”.
“Não à toa se chamava jornalismo policial, pois muito desse jornalismo era unha e carne com a polícia”
A Ponte, por sua vez, se concentra em reportar os abusos da polícia e de outros braços do Estado, como o sistema de Justiça, com especial atenção às assimetrias de raça, classe e gênero nas questões de segurança pública e direitos humanos. “No noticiário sobre crimes, privilegia-se muito a classe social dos envolvidos”, disse Salvadori sobre a cobertura tradicional sobre o tema. “Se o crime acontece nos Jardins [bairro nobre de São Paulo], ele tem uma repercussão. Se ocorre na periferia de São Paulo, a repercussão é dez vezes menor. A classe social da vítima implica diretamente no tipo de abordagem que vai ser feita. Isso é uma coisa que sempre incomodou muito a gente que trabalhava nesses veículos”.
Outro cofundador da Ponte, o jornalista André Caramante, já era em 2014 uma das principais referências na cobertura de segurança pública no país. Em 2012, ele e sua família tiveram que deixar o Brasil temporariamente devido a ameaças de morte que receberam depois da publicação de uma matéria de Caramante no jornal Folha de S. Paulo, onde ele trabalhava. A matéria afirmava que um ex-chefe da Rota, unidade de elite da Polícia Militar de São Paulo, e então candidato a vereador “pregava a violência” contra suspeitos de crimes em sua página no Facebook. À publicação do texto se seguiu uma onda de assédio online e ameaças ao jornalista. (O então candidato a vereador hoje exerce seu segundo mandato como deputado estadual em São Paulo).
“No noticiário sobre crimes, privilegia-se muito a classe social dos envolvidos”
Um tempo depois de voltar ao Brasil e após 15 anos de trabalho no grupo Folha, em fevereiro de 2014, Caramante foi demitido. “Depois dessa demissão, percebi que a gente tinha que fazer alguma coisa [sobre o tema de segurança pública], porque com a possibilidade das novas tecnologias, fazer jornalismo hoje é muito mais possível do que já foi um dia”, disse ele, que hoje atua como conselheiro editorial da Ponte, ao Knight Center for Journalism in the Americas.
Já em março, menos de um mês depois de sua saída da Folha, Caramante, Salvadori e outros jornalistas começavam a colocar a Ponte de pé. Entre eles estavam Natalia Viana e Marina Amaral, codiretoras da Agência Pública, um meio jornalístico investigativo. A Pública atuou como incubadora do novo site, dando apoio editorial e cedendo computadores e espaço em sua redação para a Ponte em seus primeiros seis meses de existência, contou Salvadori.
“A Agência Pública tem uma enorme satisfação de ter ajudado no lançamento da iniciativa”, disse Viana ao Centro Knight. Para ela, a Ponte “é um dos projetos mais importantes do jornalismo independente que apareceu no Brasil nos últimos anos”. “Faz um jornalismo de qualidade e cobre assuntos que ninguém cobre, de maneira noticiosa e investigativa ao mesmo tempo, e mais importante, incansável. Eles seguem histórias que os jornais deixam de seguir, por falta de pessoal ou interesse”.
“Batismo de fogo”
Em maio de 2014, o site da Ponte ainda não existia, mas a primeira reportagem do meio foi publicada em um blog no site do jornal O Estado de S. Paulo, assinada por Caramante e pelo jornalista Bruno Paes Manso, então repórter do Estadão e também cofundador da Ponte. A matéria tratava de um adolescente negro e de classe baixa detido por um roubo apesar das evidências apontarem para sua inocência. Horas depois da publicação da reportagem, o adolescente foi liberado. “Esse foi o batismo de fogo da Ponte: a gente começou antes do site existir já tirando uma pessoa da cadeia”, comentou Salvadori.
Essa tendência se repetiu algumas vezes desde então, conforme explicaram os membros da Ponte ao Centro Knight: outros dois homens – negros e pobres – foram libertados após reportagens da Ponte apontarem inconsistências em inquéritos e processos que os levaram à prisão. E, em um caso que ganhou destaque nacional, o trabalho da Ponte ajudou a dar visibilidade à prisão de Rafael Braga, ex-catador de latinhas – também negro, também pobre – que foi a única pessoa condenada judicialmente no contexto das manifestações de junho de 2013.
Outra grande cobertura
“Fomos o primeiro veículo a entrevistá-lo e o primeiro a noticiar sua segunda prisão. E a cobertura que fizemos, ao lado de outros veículos, pesou na decisão da Justiça, absolutamente rara, de permitir que ele fosse para casa tratar da saúde”, afirmou Salvadori. Outra cobertura significativa da Ponte foi a da prisão de 18 jovens que estavam a caminho de uma manifestação em São Paulo em setembro de 2016. O site deu o furo de que havia um espião do Exército brasileiro infiltrado no grupo de manifestantes e que ele teria passado dois anos monitorando movimentos sociais em São Paulo. A informação teve repercussão nacional e foi replicada por outros meios de comunicação.
“Quando a gente faz uma reportagem que ajuda a soltar uma pessoa que estava presa injustamente é mais importante do que causar impacto na outra ponta [da cobertura jornalística]”, disse Caramante. “Mas também é muito bom quando uma reportagem da Ponte é reproduzida em rede nacional, quando a Ponte é citada por algum furo, quando os veículos tradicionais de comunicação vão atrás das reportagens da Ponte. Isso é muito bom, é sinal de que o que fizemos encontrou eco por aí”.
O desafio da sobrevivência
A maior parte das 10 pessoas que formam a equipe do site têm outros empregos além da Ponte. Isso porque a receita do site ainda não permite a remuneração integral de toda a equipe e dos colaboradores externos. Nos três primeiros anos da Ponte, repórteres e editores atuavam de maneira voluntária, produzindo conteúdo para o site nas horas vagas, disse Salvadori.
“Consideramos que não conseguiríamos financiamento para esse trabalho se corrêssemos atrás de financiadores apenas com a ideia de fazer um veículo que denuncia violência de Estado e fala de crimes cometidos por policiais envolvendo negros, mulheres e gente pobre nas periferias. Achamos melhor fazer algo, ter algo pronto, e a partir daí correr atrás de financiamento”, explicou.
Em 2017, então, a Ponte lançou sua primeira campanha de financiamento coletivo, que arrecadou R$ 74 mil em 60 dias, segundo o site. Na campanha se engajaram nomes conhecidos da cultura e dos movimentos sociais brasileiros, como o cantor e compositor Chico Buarque, a cientista social Silvia Ramos e o delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A partir dessa campanha, “uma coisa foi puxando a outra”, disse Antonio Junião, ilustrador e editor do site, ao Centro Knight. “A gente conseguiu um fomento da Open Society e outras fundações começaram a procurar a gente porque ouviram falar do nosso trabalho”.
Outras formas de se rentabilizar
Essas fundações financiam projetos específicos, como dois que estão sendo coordenados por Junião no momento: uma série de reportagens em vídeo sobre egressos do sistema prisional brasileiro, com previsão de lançamento em 2020, e uma plataforma de monitoramento de homicídios perpetrados pela polícia no Estado de São Paulo, que deve ser lançada no começo do segundo semestre.
Além do financiamento das fundações, a Ponte tem desde fevereiro de 2018 uma campanha recorrente de financiamento coletivo chamada “Construa Ponte”. A campanha tem atualmente 299 apoiadores fixos, cujo valor total de contribuição está em R$ 5.526 por mês.
“O principal desafio da Ponte hoje é a gente conseguir se manter vivo e ter estrutura para continuar trabalhando”, disse Junião. “Fazer jornalismo não é barato. A gente consegue fomentos pontuais para seguir em frente, mas nosso desafio maior é conseguir que a população entenda que nosso veículo é importante e por isso precisa sobreviver”.
“A Ponte precisa conseguir atrair pessoas que talvez sejam totalmente contra o jornalismo que a gente pratica”
Para isso, a Ponte precisa ampliar seu público para além de quem apoia a linha editorial do site, salientou Caramante. “A Ponte precisa conseguir atrair pessoas que talvez sejam totalmente contra o jornalismo que a gente pratica. A gente precisa tentar linguagens diferentes, falar com os mais jovens, falar com senhoras e senhores que adoram os programas policialescos convencionais”, disse ele.
Nesse sentido, fazer uso de paywall, restringindo o acesso ao conteúdo da Ponte apenas para apoiadores, está fora de questão, afirmou Salvadori. “A gente quer que o nosso material seja visto pelo maior número possível de pessoas. Nosso material é incômodo. A Ponte nasceu para expor uma realidade que as pessoas não querem ver. Então [um desafio é] fazer com que as pessoas vejam isso que elas não querem ver”, disse ele.
Ativistas do jornalismo
Por sua conexão com movimentos sociais, seu compromisso com a defesa dos direitos humanos e suas denúncias dos abusos do Estado, seria a Ponte um meio jornalístico ativista? Maria Teresa Cruz, editora e repórter da Ponte, considera que o site é um meio jornalístico, mas não ativista. “No entanto, a Ponte tem um lado: o lado de quem foi violado pelo Estado”, afirmou.
“O ativismo é super importante, inclusive nós temos grupos ativistas como parceiros, mas não gosto de colocar a Ponte nesse lugar, porque acho que prejudica a parte jornalística. Por exemplo, se eu tiver que denunciar um erro cometido do lado que teoricamente, pela minha visão de mundo, seja mais parecido com o meu, eu não vou denunciar? O ativismo faz isso, a gente não”, disse ela.
Caramante, por sua vez, tem uma visão que concilia as duas esferas. “A nossa bandeira é o jornalismo. Então sim, somos ativistas, mas do jornalismo. Praticamos o que entendemos como bom jornalismo: temos uma conduta jornalística, prezamos pelo outro lado, por não expor as pessoas de maneira que consideramos injusta. Somos, sim, ativistas do jornalismo.”