Como correspondente do jornal Valor Econômico no Nordeste do Brasil, o repórter Murillo Camarotto se tornou um ávido consumidor da imprensa local dos principais estados da região. Nos cinco anos que esteve por lá, notou um acentuado declínio da produção jornalística em redações. Pico que coincidiu com o boom da economia brasileira na primeira década do século 21. A crise econômica que se seguiu, somada à crise do próprio jornalismo tradicional, resultou num enfraquecimento brutal da cobertura local.
Com o olhar treinado de repórter, Murillo Camarotto notou uma tendência curiosa. Ele percebeu a saída de jornalistas mais experientes das redações para integrar as equipes de comunicação dos governos da região. A curiosidade se transformou em investigação. Também culminou em projeto de pesquisa conduzida no Reuters Institute for the Study of Journalism, na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Publicado neste ano, o estudo revela um cenário assustador, ainda mais quando se considera que a região é onde os desertos de notícia são mais predominantes no país. Em meio à crise nos 10 anos analisados, de 2008 a 2018, 262 jornalistas deixaram as redações de dois dos maiores jornais do estado de Pernambuco, o Diário de Pernambuco e a Folha de Pernambuco. Destes, 202 foram localizados por Murillo Camarotto, que descobriu que a maior parte deles (38%) passou a trabalhar para “autoridades locais: governo estadual, prefeituras, deputados, vereadores, secretários de estado, etc.,” diz a pesquisa, publicada em inglês.
“Alguns dos jornalistas mais renomados e premiados de Pernambuco estão atualmente trabalhando para o governo e a imprensa local é hoje muito mais dócil e vulnerável do que no passado” escreve Murillo Camarotto. O Knight Center for Journalism in the Americas conversou com o pesquisador. Em pauta, os resultados da sua pesquisa. Os efeitos nocivos do fenômeno que ele identificou para o jornalismo como fiscal do poder e algumas sugestões para recuperar a relevância da imprensa local também foram debatidos. A entrevista segue abaixo.
Como surgiu a ideia de investigar a migração de repórteres e editores de jornais para a área de comunicação de órgãos do governo no estado de Pernambuco?
A ideia de pesquisa surgiu quando eu fui correspondente do Valor Econômico na região Nordeste entre 2009 e 2014, um período de grandes transformações econômicas e sociais no Brasil. Eu consumia muito a imprensa regional e pude perceber, com o avanço da crise da indústria jornalística, uma queda vertiginosa na cobertura local e a reprodução muito grande de noticiário nacional e internacional nos jornais locais. Fiz um projeto de pesquisa e fui selecionado para o Reuters Institute for the Study of Journalism, na Universidade de Oxford.
Na sua pesquisa, o que você descobriu sobre as causas que levam os jornalistas a deixarem as redações para ir trabalhar para o governo?
Eles foram trabalhar não apenas para o governo de Pernambuco, mas também para políticos locais. Foram atraídos basicamente por condições um pouco melhores de trabalho. Uma pequena melhora já era o suficiente para tirá-los das redações. Os motivos vão da falta de perspectivas profissionais à insatisfação com a remuneração. Muitos citaram também uma falta de liberdade crescente, com uma dificuldade para conseguir emplacar os assuntos. Então a oferta que vinha do setor público era muito tentadora. E a maioria acabou sucumbindo a isso pela estabilidade, pela remuneração e acabou mudando para outro lado do balcão. O resultado ao longo do tempo foi claramente percebido nas páginas na cobertura que é feita.
Como eles definem essa “pequena melhora” que você mencionou?
Às vezes, [bastava] um reajuste salarial de 10% a 20%. Não é uma coisa assim que vai fazer a grande diferença na vida financeira da pessoa. Além disso, muitos falaram na pesquisa que os próprios jornais estavam praticamente expulsando as pessoas. Alguns chefes [das redações] diziam para eles, “olha, se pintar alguma coisa vai embora, porque a situação aqui é horrorosa, não tem condições de dar aumento, não tem condições de prometer nada”. E aí o poder público e os políticos viram nisso uma oportunidade de atrair principalmente os repórteres mais críticos.
É interessante você falar isso, porque na pesquisa você diz que alguns jornalistas que você entrevistou disseram que agora que eles deixaram as redações está mais fácil emplacar matérias nos jornais de onde eles saíram.
Esse ponto da pesquisa surgiu de forma espontânea na primeira ou na segunda entrevista. Um jornalista me falou, “comparado com quando eu era repórter, hoje em dia é muito mais fácil de colocar um release no jornal”. Isso acontece um pouco pela dependência [financeira] grande que os jornais têm do governo, mas também pela substituição dos jornalistas mais experientes, mais criteriosos, pelos mais jovens. Ele falou assim, “olha, eu com a minha experiência de repórter, consigo colocar dentro dos jornais hoje praticamente a íntegra do que os meu cliente quer”. No caso, o governo e os políticos.
Dos jornalistas que você entrevistou, que saíram das redações muitas vezes por uma pequena melhora salarial, quantos estariam dispostos a voltar caso tivessem também alguma melhoria na sua condição de trabalho?
Tem uma pergunta na pesquisa que é se eles pretendem voltar ao jornalismo em algum momento e 75% responderam que não pretendem voltar para uma redação [15% admitem voltar dependendo das condições]. Eles falam não pela falta de amor pelo ofício, mas pela completa falta de perspectivas. Ninguém acredita que a indústria vai se recuperar ao ponto de ter capacidade de oferecer para essas pessoas o mínimo que elas querem para voltar. Um salário razoável e um pouco de liberdade, não é nenhum pedido mirabolante, né? Mas a desilusão é muito grande e isso foi bem marcante durante as entrevistas.
A edição mais recente do Atlas da Notícia mostra que o Nordeste é onde existe a maior proporção de municípios considerados desertos de notícias. Ou seja, sem um único veículo de imprensa. Como você analisa esse resultado à luz das descobertas da sua própria pesquisa?
Imagina se colocar na conta nesse número os veículos locais que não fazem jornalismo local? Eu acho que aumenta esse número de brasileiros vivendo no deserto de notícias. Isso é um caso claro que está na pesquisa. Há dez anos, por exemplo, a cobertura local de um jornal regional era de 60% em política e caiu para 20%. Então, apesar de nesse caso existir o veículo, ele não está mais cobrindo o poder local, não o está mais fiscalizando. Engraçado a gente estar conversando sobre isso [a entrevista foi feita no sábado, 14 de dezembro], porque temos um exemplo recentíssimo.
A Folha de S. Paulo publicou que o governo de Pernambuco fez uma manobra contábil para permitir o pagamento de superremunerações aos juízes do Tribunal de Justiça do estado. E os dois jornais locais não deram uma linha. Uma pessoa não consegue viver sem água e sem comida, mas sem notícia ela vai vivendo. No longo prazo, a sociedade vai se acostumando a viver sem informação confiável. Para mim o efeito na democracia é tremendo. É uma coisa assustadora.
Assustadora, sem dúvida, mas há saídas? O que a sua pesquisa identificou como caminhos para começar recuperar o jornalismo local?
O cenário é, de fato, bastante complicado. Mas podemos dizer que há caminhos, né. No caso dos jornais locais, eu entendo que a primeira lição é voltar a ser local. Apesar das dificuldades operacionais e financeiras, os repórteres têm de estar nas ruas ouvindo as pessoas sobre os problemas da comunidade, fiscalizando o poder, fiscalizando os tribunais e trazendo informação relevante. O segundo passo a meu ver é voltar a ser relevante.
Não é fácil, pelo contrário, mas alguns modelos já estão sendo testados na Europa e Estados Unidos, alguns com bastante êxito. Na América Latina, a ordem do dia ainda é sobreviver, mas a tendência de crescimento de oferta de financiamento para jornalismo independente, por exemplo, eu creio que pode ser um fator bastante importante para o início de uma recuperação do fôlego do jornalismo local.
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