Apesar do grande número de estudos científicos publicados diariamente no Brasil, entrar em contato com os responsáveis por essas pesquisas pode ser desafiador e entrevistá-los, mais ainda. Diante dessa realidade, jornalistas brasileiras criaram uma plataforma para servir de ponte entre pesquisadores e a imprensa, além de ajudar a mudar a cultura de divulgação científica no país. A Agência Bori já tem parceria com 90 revistas científicas, mas a proposta é expandir e incluir novas publicações, segundo as coordenadoras do projeto, as pesquisadoras e jornalistas de ciência Ana Paula Morales, 35, e Sabine Righetti, 38.
A plataforma vai apresentar toda semana ao menos três estudos inéditos e embargados, oriundos das revistas parceiras, que tenham potencial de divulgação e interesse público. Além de selecionar esses artigos, a equipe da Bori prepara um resumo sobre cada pesquisa, faz um pequeno media training com os cientistas e disponibiliza seus contatos.
“A gente faz o release e passa para os pesquisadores aprovarem. Se eles concordarem com a divulgação na Bori, eles precisam estar disponíveis para dar entrevistas durante o período de embargo”, contou Sabine Righetti, durante o evento de lançamento, no mês passado, em São Paulo.
Para ter acesso ao material, jornalistas precisam fazer um cadastro gratuito na plataforma. Do dia 6 de fevereiro, quando as inscrições foram abertas, até a data de lançamento da agência, 167 jornalistas se cadastraram. “Isso é muito legal. Em menos de uma semana tivemos jornalistas de todo o país inscritos”, afirmou Ana Paula Morales.
A plataforma é voltada para repórteres de todas as áreas, não apenas para os de ciência. A ideia é que a Bori divulgue pesquisas relevantes para diversas editorias. São os casos de economia, cidades, saúde, educação, meio ambiente, esportes, entre outras. Após o fim do embargo, os releases ficam armazenados na plataforma e podem ser copiados na íntegra, contanto que seja dado o crédito para a Bori. “Jornais do interior, que têm redações menores, por exemplo, têm essa demanda”, disse Ana Paula Morales.
A iniciativa, inspirada na plataforma americana EurekAlert!, tem como objetivo aumentar a visibilidade da ciência produzida no Brasil. Segundo levantamento da Bori, o país publicou cerca de 230 artigos científicos por dia em 2018, o que coloca o Brasil entre os 15 maiores produtores de ciência do mundo. “Cerca de 10% dessas pesquisas têm potencial de divulgação, poderiam estar na imprensa. Só com esse material daria para ocupar um jornal inteiro. Mas nós não vemos essa ciência na mídia, o que me angustia muito”, afirmou Sabine Righetti.
As consequências dessa invisibilidade são graves, apontam as coordenadoras. Segundo pesquisa do CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos), publicada pela Folha de S.Paulo em julho 2019, 90% dos brasileiros não conseguiam mencionar o nome de um cientista e 88% não sabiam onde se faz pesquisa científica no país.
Ao mesmo tempo, em redações cada vez menores, jornalistas brasileiros enfrentam vários obstáculos para fazer matérias sobre pesquisas científicas. “As principais dificuldades são encontrar os estudos e falar diretamente com o pesquisador. Isso demora muito, e o jornalismo tem uma urgência”, disse Morales.
Com isso, a imprensa brasileira acaba cobrindo mais os estudos do exterior do que a ciência feita no próprio país. “Uma pesquisa da Bori mostra que a Nature apareceu 11 vezes em um único mês na Folha. Enquanto isso, entre 2007 e 2011, só duas revistas brasileiras apareceram no mesmo jornal em matérias de divulgação científica, segundo um estudo da pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Germana Barata“, disse Sabine Righetti, em entrevista ao Knight Center for Journalism in the Americas após o lançamento.
Outro problema, de acordo com as coordenadoras, é que poucas instituições científicas no Brasil têm assessoria de imprensa. “Às vezes é mais fácil falar com alguém da Nasa do que com um cientista de uma universidade aqui na esquina, porque não tem assessoria ou você não acha o contato do pesquisador e, quando acha, ele não quer falar”, explicou Sabine Righetti.
Segundo as coordenadoras, isso fez com que a Bori tivesse que assumir de forma mais ativa o trabalho de divulgação. “O EurekAlert! só republica os releases dos centros de pesquisa, mas isso não ia funcionar aqui. Além de serem poucas, muitas vezes as assessorias de imprensa são institucionais. Fazem release da agenda do reitor da universidade, mas não fazem divulgação científica”, pontuou Sabine Righetti.
Um grande entrave, destacam elas, é a cultura da academia brasileira, que vê com desconfiança cientistas que falam frequentemente com a imprensa. Dos pesquisadores procurados pela Bori até o lançamento da plataforma, 20% não foram encontrados ou recusaram a divulgação. Alguns acham que a imprensa “escreve tudo errado ou simplifica demais”, e outros simplesmente não querem falar com jornalistas.
As coordenadoras consideram a taxa alta. “Não basta defender a divulgação científica, precisa querer falar com a sociedade”, destacou Sabine Righetti. Presente no evento, o diretor-geral do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), Marcelo Viana, disse que os cientistas brasileiros não são treinados, incentivados ou premiados por falarem com a imprensa. “Ao contrário, alguns colegas começam até a te olhar feio, achando que você tem alguma agenda oculta”.
Sabine Righetti citou o exemplo dos Estados Unidos, em que pesquisadores têm mais chances de receber financiamento se puderem demonstrar uma participação na mídia. “Isso precisa ser uma métrica, uma forma de avaliação do cientista”, disse.
Ana Paula Morales reforça que o objetivo da Bori é aproximar jornalistas e pesquisadores, para ajudar a promover essa mudança cultural. Nesse sentido, ela afirma que os movimentos terraplanista ou antivacina, além dos ataques de governos à ciência, às universidades e aos intelectuais em geral, representaram uma janela de oportunidade para a Bori. “Antes, quando a gente ia vender o projeto, diziam: ‘não tem dinheiro nem para ciência, imagina se vai ter para divulgação’. Hoje eles entendem a urgência disso”, disse ela, em entrevista ao Centro Knight após o lançamento.
A Bori tem um sistema de inteligência artificial próprio que unifica os dados dos periódicos científicos e gera alertas de acordo com critérios definidos pelos jornalistas da plataforma. “Era algo que eu fazia manualmente no Diário Oficial, em cada PDF. Buscar por palavras-chave como dengue, DNA, Amazônia, geneticamente modificado ou Nióbio”, contou Sabine.
Além da busca automatizada por assuntos que podem render matérias, as jornalistas pretendem implementar alertas de acordo com outros critérios. “Se uma universidade nunca publica, quando ela divulgar um estudo, por exemplo, a inteligência artificial vai destacar isso para nós”, explicou a jornalista da Bori.
Após essa varredura automatizada, a equipe faz uma curadoria e seleciona os melhores estudos, em uma espécie de “filtro humano”. Em uma segunda etapa, os jornalistas procuram o pesquisador –até nas redes sociais se for preciso– e combinam a divulgação.
Atualmente, a plataforma conta com cinco profissionais fixos e oito redatores freelancers, mas ainda não se sustenta sozinha. Em 2017, a Bori recebeu o primeiro aporte, quando começou a ser oficialmente desenvolvida. Desde então, a plataforma ganhou R$ 200 mil do Instituto Serrapilheira e R$ 163 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Com esse valor, foi possível colocar a Bori de pé e garantir seu funcionamento por um ano após o lançamento.
Apesar do aporte, as coordenadoras trabalham como voluntárias até hoje – elas começaram a planejar a Bori há cerca de oito anos. Por isso, ambas tiveram que desenvolver a plataforma em paralelo com outras atividades: Ana Paula Morales é editora em uma revista científica, e Sabine é pesquisadora da Unicamp. Durante esse tempo, as duas tiveram que pagar passagens de avião do próprio bolso para divulgar o projeto pelo país e ouviram muitas respostas negativas, até conseguirem o primeiro investimento.
Segundo as coordenadoras, a Bori tem um modelo de negócio traçado, que se baseia na venda de assinaturas ou pacotes para instituições e cientistas que queiram ter uma presença maior ou periódica na plataforma. Elas já fecharam um acordo do tipo com a Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP). “Faremos dois estudos deles por mês”, explica Sabine.
A Bori também vai oferecer aos cientistas a possibilidade de pagar para ter seu artigo divulgado. Enquanto o modelo não se consolida, as coordenadoras continuam buscando financiamento para os próximos anos do projeto.
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