Eram meados de janeiro de 2020 quando a brasileira Cristina Tardáguila intensificou conversas com checadores de fatos de Taiwan. Os profissionais estavam preocupados com a chuva de desinformações no continente asiático sobre a nova doença, que teve os primeiros casos notificados na potência vizinha, a China. Até aquele momento, nenhum caso do novo coronavírus, ainda pouco conhecido, tinha sido identificado fora da Ásia.
Na mesma época, um pesquisador entrou em contato para obter informações sobre o enquadramento de um médico chinês por autoridades policiais na cidade de Wuhan. Ele era denunciado por enviar alertas a colegas sobre o novo surto — de causa ainda desconhecida — que se espalhava pelo país.
Cristina Tardáguila, que é diretora adjunta da Rede Internacional de Checagem de Notícias (IFCN, na sigla em inglês) e fundadora da Agência Lupa, ligou o alerta vermelho. Foi quando perguntou para agências de checagem de todo o mundo se estavam observando o mesmo fenômeno. Em 24 de janeiro, veio a resposta. “A reação foi impressionante. Mais de 30 unidades de checagem do mundo inteiro dizendo que estavam vendo um elevado grau de desinformação sobre essa doença”.
Teve início ali uma colaboração que hoje reúne 112 checadores de mais de 45 países e 15 idiomas. O objetivo: contribuir para a checagem de fatos em meio à infodemia — vasta quantidade de informações — sobre a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.
Em pouco menos de dois meses de cooperação, mais de 1.000 verificações de fatos foram realizadas. Em 18 de março, o banco de dados, com todas as falsidades detectadas até aqui, foi publicizado. Uma lista no Twitter também permite acompanhar as checagens, identificadas com as hashtags #CoronaVirusFacts e #DatosCoronaVirus. Em breve, uma chamada será aberta para que novas agências de checagem se somem à aliança.
Com a experiência em curso, veio a reafirmação de algo que Cristina Tardáguila e muitos profissionais que trabalham com o fact-checking já compreenderam: a colaboração é o caminho no jornalismo. “Sinto como estivesse em uma redação mundial”, conta a jornalista em conversa com a Abraji.
“Mais do que nunca, é a hora de colaborar. Unir nossas forças para não fazer trabalho dobrado. Precisamos entender que a nossa concorrência é a desinformação, não é o jornal do lado ou a revista vizinha”, alerta Cristina Tardáguila. “Trabalhar juntos e peitar esse monstro que é a desinformação na saúde — uma desinformação que mata”.
Além da aliança entre os checadores do coronavírus, outras iniciativas pelo mundo têm criado parcerias para a cobertura da pandemia, como mostra Stefanie Murray neste artigo (em inglês).
O Brasil não fica de fora. Coletivos de comunicação da periferia lançaram em 19.mar.2020 a coalizão nacional #CoronaNasPeriferias. Já a Agência Lupa e o Redes Cordiais construíram parceria para conscientizar seus seguidores sobre a importância de ficar alerta contra a desinformação em torno da Covid-19.
Entre mostrar que a Covid-19 não é propagada por morcegos; desmentir as falsas curas para a doença espalhadas nas redes sociais e lembrar que nenhuma raça ou religião pode impedir — ou propagar sozinha — o coronavírus, a aliança se deparou com o grande desafio de trabalhar colaborativamente com um assunto até então não abordado pela IFCN: a saúde.
Outras incertezas chegaram. Uma delas é não saber o que vem pela frente. “Diferentemente das outras colaborações que fizemos, essa é uma que não sabemos quando vai acabar. E o número de checagens que fazemos é um gráfico ascendente”, explica Cristina Tardáguila.
Enfrentar a dissonância entre autoridades de saúde pública ao redor do mundo também é uma dificuldade na hora de checar o assunto. “O conteúdo de saúde tem adesão de 100% da população. Todo mundo quer velocidade na checagem, porque é uma questão de sobrevivência. Em meio a isso, trabalhamos com um conteúdo cuja base de dados é frágil e está em construção”.
Nos quase dois meses de colaboração na checagem, a jornalista conta que já foi possível notar diferentes “ondas de desinformação”. Assim que começaram o trabalho, informações falsas sobre a origem do vírus eram propagadas com intensidade. Em um segundo momento, uma imensa quantidade de vídeos com supostas cenas do que estava acontecendo na China.
Depois, vieram as falsas medidas preventivas contra a doença. Em seguida, os falsos boatos sobre extermínios na China. Algumas regiões do mundo também observaram falsas informações ligadas a raça e religião.
“O coronavírus dá oportunidade para bandeiras absurdas se propagaram. Movimentos racistas, xenófobos, antivacina e religiosos, por exemplo, têm instigando as ‘notícias falsas’. Isso quadruplica o trabalho para jornalistas e checadores de notícias”, explica.
Nos relatórios semanais sobre a aliança de checadores publicados no Poynter Institute pela brasileira é possível acompanhar qual foi o foco da desinformação na semana.
A jornalista frisa que é trabalho dos checadores e jornalistas apurar quaisquer informações — por mais absurdas que possam parecer. “Nunca sabemos como o outro está recebendo essa informação”.
Em meio ao grande volume de trabalho e da incerteza, uma oportunidade: “No mundo todo, fact-checkers são acusados de tudo. Esse trabalho cavalar que estamos fazendo demonstra que a posição dos checadores é unicamente ao lado dos fatos. Nosso trabalho é trazer a melhor versão de uma informação baseada no melhor banco de dados existente”, afirma Cristina Tardáguila. “Que esse momento sirva para sermos menos atacados e mais respeitados. Se não fossem os checadores, o mundo ainda estaria lendo sobre morcegos”.
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