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O que rolou no maior evento de jornalismo de dados do mundo?

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Acompanhei no fim de semana, pela Abraji, o Nicar, o maior evento de jornalismo de dados do mundo, organizado pelo Investigative Reports and Editors (IRE), entidade que é uma das fontes de inspiração da nossa associação. Tentaremos trazer algumas das técnicas empregadas pelos jornalistas que usam dados nos EUA para o Brasil em novos treinamentos, tutoriais ou iniciativas que possamos organizar.

Aproveito para compartilhar algumas das coisas bacanas que poderão ser úteis ou render boas ideias de pauta. Começo pelos exemplos mais interessantes de uso de RAC que vi no evento.

Confesso que me surpreendi com o número de boas reportagens de veículos regionais. O jornalismo de dados tem uma vocação óbvia para descortinar boas histórias locais, e foi muito bom ver que um número significativo de veículos de escopo mais localizado com equipes de dados (ainda que de três ou quatro pessoas), desenvolvedores dedicados especificamente a reportagens e jornalistas metendo a mão na massa e escrevendo código na tentativa e erro.

Exemplo disso foi a série Silent Majority (Maioria Silenciosa) do jornal Austin American Statemen. As matérias mostram a sub-representação da crescente população hispânica nas cidades e condados do Texas, indo fundo numa investigação que revela como a lei local dificulta a participação dessa comunidade e da movimentação de fazendeiros e outros empresários locais para tentar impedir a candidatura de hispânicos. Boa história.

A reportagem nessa linha que mais me impressionou, de longe, foi a Doctors & Sex Abuse (Médicos e Abuso Sexual, do Atlanta Journal Constitution). Neste caso, o veículo começou olhando para o próprio quintal e resolveu mergulhar depois em dados do país inteiro. Após de descobrir que dois terços dos médicos da Geórgia envolvidos em caso de abuso sexual (incluindo casos de estupro), voltavam a trabalhar sem maiores punições, eles resolveram lançar investigação em nível nacional tentando obter dados de todos os estados e montar banco de dado inédito. Tentaram, sem sucesso, via lei de acesso à informação e depois descobriram caminho tortuoso de sites locais com PDFs. Para arrancar as informações deles, criaram série de raspadores de dados e reuniram mais de 100 mil documentos sobre punições a médicos no país. Como não tinham braço para analisar um por um os documentos, identificaram padrões entre os que interessavam via machine learning e reduziram, assim, a base para 3.100 médicos, que foi o ponto inicial para a grande reportagem. Como resultado, além de análise profunda sobre esse tipo de crime, o que está acontecendo com os doutores, o que as vítimas devem fazer, etc. Mostraram também que os equivalentes aos conselhos regionais de medicina por dos EUA são extremamente lenientes com casos graves de abuso e estupro. Baita matéria.

Dava para encontrar histórias de veículos locais por todos os cantos da conferência. Um exemplo foi uma investigação original do Tampa Bay Times, mostrando que o Walmart por lá estava dando um jeito de economizar com segurança privada fazendo volume gigantesco de ligações sistemáticas à polícia para checar as suas lojas, sobrecarregando os oficiais e transferindo o fardo aos contribuintes. Exemplo bem diferente de uso de informações públicas.

Teve também um golaço do pessoal do Sarasota Herald Tribune que, numa grande análise de dados de sentenças de crimes, conseguiu identificar padrões racistas entre os juízes da Flórida. Ao analisar as sentenças, eles mostraram que, em geral, negros terminam recebendo penas muito mais rígidas do que brancos pelos mesmíssimos crimes. Conseguiram pontuar a análise com exemplos bem fortes da injustiça, o que dá um belo fôlego para o texto.

Tem muito mais apuração regional interessante, mas como diria Monarco, seu for falar da Portela, hoje não vou terminar. Uma última apuração mais localizada que vale nota foi esta matéria do pessoal do Reveal News (ligados ao Center for Investigative Reporting), em formato bem interessante, sobre série de incêndios no Sul da Califórnia. O bacana aqui é que enquanto você lê o texto na barra da esquerda, o mapa à direita vai ajudando a contar a história com dados geolocalizados. Vale dar uma entrada para conferir.

Veículos maiores também tem feito muita coisa boa com jornalismo de dados, mas as matérias deles tiveram menos destaque no evento deste ano e foram menos premiados.

Alguns exemplos bons é a rádio WNYC que mostrou um cancelamento ilegal e desproporcional de títulos de eleitores hispânicos em Nova York, a já conhecida história do Buzzfeed desmascarando esquema de partidas de tênis com resultados combinados, e a não tão conhecida história deles como os repórteres conseguiram obter dados do transponder de drones do FBI para tentar descobrir o que esses aviões espionavam no chão dos EUA. Aliás, vale frisar aqui à capacidade da equipe de dados do Buzzfeed de análise de mídias sociais para achar histórias relevantes.

Gostei também de grande história com dados da Reuters mostrando que os EUA não tem a menor noção de quantas pessoas morrem de infecção hospitalar porque o sistema de notificação é uma ficção.

Por último, se alguém chegou até aqui, deve estar interessada(o) em mais referências. Mostraram também matérias um pouquinho mais antigas que não conhecia:

– Como hospitais estavam esperando o “timing ideal” (a partir do qual não recebem verba do Medicare) para dar alta. Isso fazia com que uma quantidade desproporcional de pacientes só saísse de lá exatamente no momento que maximizava os ganhos dos centros médicos (Do Wall Street Journal, aqui).

– O drama de pessoas que tinham pequenas dívidas de impostos “vendidas” das cidades para investidores (é um pouco mais complicado que isso, mas é essa a ideia). As dívidas viravam bolas de neve e as pessoas perdiam suas casas por esquecer de pagar 100 dólares de impostos (Washington Post).

Enfim, peço desculpas pelos links todos para matérias em inglês. Espero que sirva de inspiração pra pautas por aqui. Tem muita coisa legal aí.

*Tiago Mali, coordenador de cursos da Abraji, viajou à Florida para participar do Nicar em fevereiro de 2017. Todas as suas despesas foram cobertas com recursos da própria Abraji.

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Abraji

Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Criada em 2002 por um grupo de jornalistas brasileiros interessados em trocar experiências, informações e dicas sobre reportagem, principalmente sobre reportagens investigativas. É mantida pelos próprios jornalistas e não tem fins lucrativos.

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