Brasileiros são os que mais desconfiam da capacidade da imprensa de reconhecer seus próprios erros, quando comparados com indianos, ingleses e norte-americanos. Os dados são apontados pela pesquisa “Superando a indiferença: o que as atitudes em relação às notícias nos dizem sobre a construção da confiança”.
O relatório, publicado em 9 de setembro, é parte de um projeto mais amplo do Reuters Institute for the Study of Journalism (RISJ, da sigla em inglês) sobre a confiança das pessoas nas notícias, e coletou dados em quatro países: Brasil, Índia, Reino Unido, e EUA.
Para o levantamento, o RISJ trabalhou com três empresas de pesquisa: Datafolha no Brasil, Internet Research Bureau na Índia, e Kantar nos EUA e no Reino Unido. Foram entrevistadas cerca de 2 mil pessoas em cada país, em uma amostragem representativa da população local, entre maio e junho de 2021.
Um dos pontos que chamou atenção dos pesquisadores sobre o Brasil foi a parcela da população que acredita que as organizações de notícias tentam esconder seus próprios erros: 78%. A taxa é de 64% no Reino Unido, 59% nos EUA e 55%, na Índia. Entre os brasileiros, apenas 20% acreditam que as empresas de jornalismo estão dispostas a reconhecer seus equívocos (2% não souberam opinar).
Descobrimos que os brasileiros são, em alguns casos, ainda mais céticos em relação aos jornalistas do que os entrevistados de outros países. […] Mesmo aqueles que geralmente confiam nas notícias suspeitam que os jornalistas tendem a encobrir seus erros.
Camila Mont’Alverne, doutora em política e coautora do estudo e pesquisadora de pós-doutorado no RISJ, dentro do projeto Trust in News
Brasileiros também parecem ter opiniões negativas sobre a imprensa com mais frequência do que cidadãos de outros países. Por exemplo, 44% dos brasileiros acham que os jornalistas comumente provocam, de forma intencional, para chamar atenção para si mesmos, e 43% acreditam que profissionais da imprensa frequentemente tentam manipular o público – as taxas são as mais altas encontradas entre os países pesquisados. Ao mesmo tempo, 36% dos brasileiros acreditam que jornalistas comumente são pagos pelas suas fontes, ficando atrás só da Índia, com 37%.
Mas nem sempre os brasileiros são os mais céticos em relação à imprensa. Por exemplo, a maioria dos entrevistados, em todos os países, acredita que os jornalistas rechecam os fatos com várias fontes muito frequentemente ou às vezes, e a porcentagem dos brasileiros está entre as mais altas: 72% na Índia, 70% no Brasil, 66% no Reino Unido e 63% nos EUA.
Na pesquisa, entrevistados foram separados entre os que “desconfiam em geral”, “confiam seletivamente” e “confiam em geral” nas notícias – a classificação foi feita considerando a média de marcas de jornalismo nas quais os entrevistados diziam confiar em cada país. No Brasil, 24% das pessoas entraram na categoria dos que “desconfiam em geral”.
Os pesquisadores argumentam, no estudo, que essa segmentação permite uma melhor comparação entre os países e ajuda e entender de forma mais complexa o problema, porque “um consumidor de notícias bem informado e reflexivo é capaz de discernir as fontes que encontra; eles sabem em quais fontes de notícias podem confiar, mas também sabem sobre quais devem ser céticos e por quê”, afirma o estudo. “Em outras palavras, a confiança generalizada em todas as notícias pode ser tão prejudicial quanto a desconfiança generalizada de todas as fontes”.
A partir dessa segmentação dos entrevistados, vários aspectos sobre o perfil dos que “desconfiam em geral” das notícias no Brasil destoam em relação ao mesmo grupo em outros países. Um dos principais, destaca Mont’Alverne, é a associação com a democracia. Nos países pesquisados, pessoas que confiam menos nas notícias tendem a ser mais críticas sobre como a democracia funciona em suas sociedades. Esse resultado sugere que a confiança nas notícias pode sofrer influência de fatores externos à própria imprensa.
Nos EUA, talvez um reflexo da polarização política, 73% dos norte-americanos que “desconfiam em geral” das notícias estão insatisfeitos com a democracia – taxa que é de apenas 22% entre os que “confiam em geral”.
Já no Brasil quase não há diferença nesse quesito. “Os dois grupos estão muito insatisfeitos. Isso não é novidade, já que os brasileiros há muito tempo estão insatisfeitos com o funcionamento da democracia em seu país, mas o papel da imprensa nessa dinâmica parece distinto em comparação com outros países”, diz Mont’Alverne.
O perfil do brasileiro que não confia nas notícias coincide, em alguns aspectos, com o de outras nações. Por exemplo, eles tendem a ser mais velhos em todos os países pesquisados. No Brasil, 38% dos que “desconfiam em geral” têm mais de 55 anos e, entre os que “confiam em geral”, 42% têm menos de 35 anos.
Da mesma forma, os desconfiados são em sua maioria homens, o que se repete no Brasil e Índia (59% do grupo) e, em menor proporção, no Reino Unido (53%) – nos EUA, eles estão igualmente distribuídos entre os gêneros. No Brasil, há ainda um fator racial e regional: os desconfiados são majoritariamente brancos e concentrados na região Sul.
Curiosamente, em todos os países, os desconfiados tendem a não ter ensino superior, exceto no Brasil, onde a educação parece não ter influência nisso. Na Índia e no Reino Unido, os que “desconfiam em geral” tendem a vir de famílias de baixa renda, enquanto no Brasil é o contrário, eles pouco figuram entre os mais pobres.
Não encontramos relação entre educação e confiança nas notícias no Brasil e esse é outro diferencial dos demais países. No entanto, outros estudos também mostraram que a educação não é necessariamente um preditor de confiança nas notícias, e nem sempre segue um padrão consistente (em alguns casos, aqueles que são mais instruídos confiam menos nas notícias).
Mont’Alverne.
Ela diz que brasileiros com ensino superior costumam demonstrar familiaridade com conceitos jornalísticos, como a diferença entre um repórter e um comentarista. Ou seja, para essa parcela da população, talvez a educação midiática não necessariamente reforce a confiança nas notícias.
“A partir de nossas entrevistas qualitativas em nosso relatório anterior, muitos entrevistados brasileiros que eram altamente educados também demonstraram que tinham alguma noção de como as notícias funcionam, mas se opuseram ao que consideravam uma influência política ou comercial indevida”, explica Mont’Alverne.
Coautor do estudo, Benjamin Toff, pesquisador sênior do RISJ e líder do Trust in News Project, concorda.
“Em outras palavras, a educação e a alfabetização midiática podem ajudar a desmistificar aspectos do jornalismo para alguns, mas também pode levar pessoas a adotar razões adicionais para serem céticas em relação às notícias”, disse ele à LJR.
O estudo também analisou o perfil político dos desconfiados e, no Brasil, eles são em sua maioria, 53%, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, conhecido por seus ataques recorrentes e virulentos contra a imprensa.
Perguntados se o brasileiro desconfiado, identificado com uma elite (branco, homem, do Sul, mais velho, com menor chance de estar entre as camadas mais pobres) sempre teve esse perfil, ou se esse é apenas um retrato do momento político atual, os autores responderam que os dados da pesquisa não permitem saber isso, mas que pretendem explorar esse tema nos próximos estudos. No entanto, acreditam que provavelmente essas características sejam mutáveis.
“É bem possível que o perfil dos desconfiados das notícias esteja particularmente ligado ao contexto político atual, visto que o perfil dos desconfiados em geral é muito semelhante ao dos que apoiam o presidente agora. Essa dinâmica é mais parecida com o que vemos nos Estados Unidos, onde o perfil dos desconfiados se parece muito com partidários de Donald Trump, assim como de gente menos interessada em política”, disse Toff. “À medida que as coalizões políticas mudam, as atitudes em relação à imprensa também podem mudar. Existem algumas indicações disso em nossos dados”, conclui.
As indicações a que ele se refere aparecem na confiança das pessoas em marcas de jornalismo específicas. No Brasil, o estudo identificou um viés partidário em relação à Globo (TV Globo, Globo News e G1): 83% dos petistas disseram confiar em parte ou totalmente em informações reportadas pela marca, percentual que é de 54% entre os que não são apoiadores do PT.
Segundo o relatório, essa é uma mudança em relação ao período em que o partido ocupava a Presidência, quando petistas eram muito críticos à imprensa, especialmente à Globo.
O fato de os apoiadores do Partido dos Trabalhadores (PT) confiarem mais na Globo, por exemplo. Isso pode não ter sido sempre assim e provavelmente pode mudar novamente se o Lula vencer as eleições do ano que vem. É algo a que prestaremos mais atenção nos próximos anos, com nossas rodadas adicionais de coleta de dado.
Mont’Alverne
Sobre a questão de gênero, os pesquisadores afirmam que é curioso que os homens sejam mais desconfiados no Brasil, porque dados do estudo mostram que eles acessam mais e se interessam mais pelas notícias do que as mulheres, um comportamento que geralmente está associado a uma maior confiança na imprensa. Toff afirma que os autores pretendem investigar isso de forma mais aprofundada nos próximos estudos, principalmente se o gênero tem impactos diferentes entre apoiadores e opositores de Bolsonaro.
“Pesquisas anteriores nos EUA mostraram algo semelhante, que o gênero opera de maneiras diferentes dentro dos partidos políticos e entre os partidos. É possível ou mesmo provável que o padrão geral que encontramos de homens confiando menos nas notícias mascare algumas diferenças importantes entre diferentes segmentos do público”, diz Toff.
Uma das principais conclusões do estudo é que as pessoas que menos confiam nas notícias são as mais indiferentes, não necessariamente as mais hostis em relação à imprensa. Isto é, são pessoas que pouco se importam com as práticas editoriais e não têm muitas opiniões sobre como repórteres, editores e organizações devem fazer seu trabalho.
“Isso sugere que, em certa medida, o problema que as organizações de notícias têm com as pessoas menos confiantes é provar que as notícias oferecem algo relevante para suas vidas”, afirma Mont’Alverne.
Toff sugere que a imprensa precisa deixar as conexões entre o seu trabalho e a vida das pessoas mais claras. Segundo ele, nas entrevistas qualitativas, muitos entrevistados reclamam que o jornalismo costuma focar em temas com os quais eles não se importam.
“Muitas vezes os jornalistas que cobrem assuntos políticos e cívicos acham que a importância de sua cobertura é autoevidente e podem não se dar ao trabalho de argumentar por que o que eles cobrem deveria importar para o público. Cobrir política para pessoas que não se interessam por política é um desafio e ninguém quer ser tratado de forma inferior, mas esse público geralmente desconfiado não está procurando o mesmo tipo de cobertura que as pessoas que estão interessadas em política, mas pensam que a imprensa faz os seus políticos preferidos parecem ruins”, explica Toff.
Além disso, ele destaca que esse público demonstra uma incapacidade de diferenciar entre marcas de jornalismo, e muitos tendem a ser céticos em relação a todos os veículos. Por isso, ele recomenda que as empresas de notícias tenham identidades e marcas mais aparentes, tornando muito claro, mesmo para o público que não acompanha aquele veículo, por que a informação que produzem é diferente das outras. Toff explica que visões negativas sobre o jornalismo estão muito difundidas, como a ideia de que profissionais aceitam dinheiro de fontes ou não verificam a informação.
“Muitas pessoas pensam que há uma diferença mínima entre notícias produzidas profissionalmente e todo o resto que podem ver em seus feeds nas redes sociais”, diz ele.
“Jornalistas e organizações noticiosas costumam relutar em se inserir nas notícias e costumam preferir uma postura mais imparcial. Mas há muitos críticos de notícias que ficarão felizes em avançar e apresentar suas próprias narrativas sobre como os jornalistas profissionais operam se as organizações de notícias não tomarem mais a iniciativa de apresentar esse caso positivo sobre si mesmas”.
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