Comunicação

Bolsonaro já bloqueou mais de 60 jornalistas no Twitter

Levantamento realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostra que, além de bloquear 69 jornalistas, a conta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Twitter já vetou seis veículos de comunicação. Para especialistas ouvidos pela Abraji, a nova estratégia sinaliza um claro impedimento ao trabalho de profissionais de imprensa e ato discriminatório.

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Pelo monitoramento realizado pela Abraji até esta segunda-feira (05.jul.2021), o presidente bloqueou, em ordem cronológica, os sites The Intercept Brasil, DCM, Aos Fatos, Congresso em Foco, Repórter Brasil e O Antagonista. Além de Jair Bolsonaro, outras três autoridades que exercem cargos públicos bloquearam quatro veículos, totalizando 10 empresas jornalísticas bloqueadas.

Embora não considere o bloqueio uma forma de censura clássica, o jornalista e escritor Bernardo Kucinski afirma que “uma autoridade ou órgão público, que se vale de forma sistemática de um sistema digital como o Twitter para se comunicar com o público, negar acesso à sua conta a um jornalista, além de dificultar o trabalho de apuração, configura gesto autoritário, punitivo e de discriminação”.

Kucinski é professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e foi um dos primeiros jornalistas a denunciar a tortura praticada pelo Estado durante a ditadura. Escreveu Pau de arara: a violência militar no Brasil e Jornalistas e Revolucionários, sobre os veículos alternativos que atuaram no período de ruptura democrática.

Como o professor ressalta, ainda que não seja possível comparar os paradigmas da mídia digital com os da imprensa clássica pré-internet, o atual governo tem dificultado a cobertura jornalística de sua gestão, ao vedar o acesso a informações publicadas em redes sociais.

“Dado que uma das características centrais do meio digital é a interlocução e o diálogo permanentes e contínuos, a autoridade que opta pela comunicação vertical, unidirecional, não dialogada, está se revelando especialmente autoritária e atrasada”, avalia.

Para Kucinski, a barreira imposta por Bolsonaro a jornalistas e veículos sinaliza uma descontinuidade à normalidade da comunicação institucional do governo. Foi o próprio presidente quem elegeu essas plataformas como canal oficial de comunicação em seu discurso de posse, pronunciado à frente do Palácio do Planalto, em dez.2018.

“Ainda que não seja possível comparar os paradigmas da mídia digital com os da imprensa clássica pré-internet, o atual governo tem dificultado a cobertura jornalística de sua gestão”

Abraji

Em jun.2021, Jair Bolsonaro, que bloqueara anteriormente três veículos de imprensa, vedou o acesso à sua conta aos sites Congresso em Foco, Repórter Brasil e O Antagonista.

A Repórter Brasil, organização sem fins lucrativos que há 20 anos trabalha na cobertura de direitos humanos e é um dos sites de jornalismo investigativo mais premiados do país,
vinha acompanhando atos administrativos do governo federal e destacava o engajamento do presidente para aprovação de algumas leis.

“O bloqueio dificulta nosso trabalho por não permitir um contato direto com a conta do presidente. Impossibilita uma cobertura ativa do que Bolsonaro publicou ou de como ele interage com seus seguidores”, conta Marcel Gomes, diretor-executivo da ONG.

Problemas causados pelo bloqueio no Twitter

Desde o início da gestão Bolsonaro, a equipe da Repórter Brasil enfrenta dificuldades para ouvir o governo em pautas que apresentam denúncias. Além da falta de resposta das assessorias de imprensa dos órgãos federais, o bloqueio no Twitter tornou o acompanhamento das ações governamentais um problema. “Na medida em que o governo faz dessas contas o seu canal oficial, parece que se deu ao direito de dar menos atenção à imprensa”, resume Gomes.

Para o diretor de redação de O Antagonista, Mario Sabino, a atitude de Jair Bolsonaro é incompatível com o cargo que ocupa:

“Ao nos bloquear, assim como a outros veículos de comunicação, Bolsonaro demonstra, mais uma vez, o seu inconformismo com o papel fiscalizador da imprensa independente, que se recusa a receber patrocínios estatais. Felizmente, graças à vigorosa democracia brasileira, personalidades autoritárias como a do presidente já não têm mais o poder de empastelar redações e fechar jornais”, ressalta Sabino.

Na perspectiva da diretora executiva para a América Latina da organização internacional Artigo 19, Denise Dora, além dos riscos à liberdade de expressão, o bloqueio a cidadãos perpetrado por autoridades no Twitter pode reforçar uma cultura intolerante e avessa ao diálogo.

“Felizmente, graças à vigorosa democracia brasileira, personalidades autoritárias como a do presidente já não têm mais o poder de empastelar redações e fechar jornais”

Mario Sabino

Dora lembra que movimentos supremacistas brancos nutriram conspirações em ambientes fechados, blindados de massa crítica:

“Cerca de 50 anos atrás, uma pequena célula da Ku Klux Klan, no interior dos Estados Unidos, ficava instalada em pequenos barracos de madeira. Entravam ali duas ou três pessoas que detinham uma senha para articular ações de ampla repercussão. Ali se tinha um ambiente isolado, em que as pessoas entravam para ouvir, ser influenciadas e participar de discursos de ódio”, compara a advogada.

Procurado pela Abraji via Secretaria Especial de Comunicação (Secom), o presidente da República e sua assessoria não haviam se pronunciado até a publicação desta reportagem.

O exemplo do pai

Logo após a nova onda de bloqueios a veículos de imprensa, o filho do presidente eleito e vereador Carlos Bolsonaro (REPUBLICANOS-RJ) seguiu a lição do pai e puniu UOL Confere e Congresso em Foco com o bloqueio.

No caso deste último, o motivo não ficou claro, apenas foi realizado uma semana após o presidente banir a conta no Twitter do portal especializado na cobertura da política nacional. Jair Bolsonaro havia bloqueado em 11.jun.2021 o site, que publicara um editorial em defesa do impeachment do presidente em 31.mar.2021.

A equipe de checagem do UOL questionou o vereador sobre o porquê do bloqueio, mas o filho do presidente não respondeu às perguntas. Na visão do diretor de Conteúdo do UOL, Murilo Garavello, “é lamentável que políticos que exercem mandatos públicos fujam do escrutínio e tentem silenciar o jornalismo e o contraditório, fundamentais para a democracia”.

As outras duas autoridades que obstruíram o acesso de veículos de imprensa ao seu Twitter compõem o governo ou a sua base de apoio. O deputado estadual de São Paulo Gil Diniz (sem partido) bloqueou o UOL Confere após uma checagem mostrar que o parlamentar conhecido como “Carteiro Reaça” havia omitido informações em um post no qual defendia a atuação do governo durante o processo de compra da vacina da Pfizer.

“Uma imprensa livre e diversa é fundamental para salvaguardar a democracia”

Natália Viana

Segundo a presidente da Associação de Jornalismo Digital (AJOR) e cofundadora da Agência Pública, Natália Viana, as organizações bloqueadas fazem jornalismo de excelência e investigam todos os poderes, incomodando quem está no governo. “A revolução digital multiplicou o número de canais que estão fazendo justamente o que é a raiz do jornalismo”, ela afirma.

“A conta do presidente no Twitter é usada para comunicados oficiais, por isso os bloqueios são uma prática discriminatória e uma afronta aos princípios de transparência, acesso à informação e liberdade de imprensa. Como sabemos, uma imprensa livre e diversa é fundamental para salvaguardar a democracia”, acrescenta Viana.

Além de veículos nativos digitais, o caderno de cultura da Folha de S.Paulo, que há mais de seis décadas cobre o setor, também foi banido. O Secretário Especial da Cultura, Mário Frias, bloqueou a Ilustrada e outros jornalistas que cobrem o mandato do ex-ator de Malhação depois da publicação de uma série de reportagens sobre o desmonte de uma comissão da sociedade civil que analisava projetos no âmbito da Lei Rouanet.

Como impedir os bloqueios

O Estado Brasileiro não tem lei ou jurisprudência vigente que regule a ação de autoridades nas redes sociais. O Projeto de Lei 2630 – mais conhecido como PL das fake news -, aprovado pelo Senado e em tramitação na Câmara dos Deputados, tornaria os bloqueios ilegais.

O advogado de direitos humanos da Media Defence, organização que assiste jornalistas juridicamente, Carlos Gaio, avalia que o dispositivo ilegal poderia reduzir danos relativos à arbitrariedade de políticos no ambiente digital. Mas, tal qual a Abraji, considera que o PL das fake news tem trechos perigosos para a liberdade de expressão e manifestação.

“O ideal seria não precisar de uma lei específica para o caso. Jurisprudências sustentadas por garantias fundamentais deveriam bastar. Os próprios políticos deveriam agir de acordo com a liturgia que seus cargos exigem”, declara o advogado, que teve uma passagem de mais de década na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Ele cita a jurisprudência da União Europeia e a decisão de uma corte de apelações dos Estados Unidos que proibiu Donald Trump de bloquear jornalistas como casos de sucesso no tema.

“O impetrado [Jair Bolsonaro], ao bloquear o grupo Congresso em Foco, meio de comunicação jornalístico legalizado, bloqueou na verdade os cidadãos brasileiros”

Ronan Wielewski Botelho

Em abr.2018, a Media Defence interveio como amicus curiae (amigo da corte, parte terceira interessada) em um processo sobre o banimento de uma autoridade a um profissional de imprensa na Polônia. O prefeito da cidade de Ciechanów bloqueou em seu Facebook um repórter, que procurou a justiça. O caso ainda não foi julgado pela mais alta corte jurídica do país. Se o político for proibido pela justiça polonesa de impedir o acesso do repórter, pode se tornar um precedente favorável à liberdade de expressão e imprensa no país.

No momento, a Media Defence apoia a Abraji na implementação de um Centro de Proteção Legal para Jornalistas, com o intuito de custear processos movidos contra profissionais de imprensa no Brasil.

No Brasil, jornalistas e outros cidadãos de diversas profissões bloqueados por autoridades no Twitter já recorreram a ações judiciais e administrativas para tentar o desbloqueio. Em 14.jun.2021, a liminar do advogado Ronan Wielewski Botelho no STF foi negada pelo ministro Dias Toffoli. A peça teve como base o caso do site Congresso em Foco, citado acima.

“O impetrado [Jair Bolsonaro], ao bloquear o grupo Congresso em Foco, meio de comunicação jornalístico legalizado, bloqueou na verdade os cidadãos brasileiros, e o impetrante”, argumenta o advogado no mandado de segurança.

Toffoli preferiu aguardar o posicionamento definitivo do colegiado sobre o tema. O primeiro mandado de segurança sobre o mérito foi protocolado em setembro de 2019 e espera o veredito da corte até hoje.

Conforme analisa Carlos Gaio, esses processos deveriam receber julgamentos mais céleres em função dos constrangimentos instantâneos a direitos fundamentais causados pelo bloqueio. “Não é uma decisão difícil”, opina.

Monitoramento da Abraji

Segundo o monitoramento realizado pela Abraji desde setembro de 2020, somadas todas as autoridades que impõem restrições a jornalistas nas redes sociais, já são 247 bloqueios. Esse número explodiu após a posse de Jair Bolsonaro. Até 2018, eram apenas 25 jornalistas banidos no meio, cinco deles pelo chefe do Poder Executivo. O levantamento da Abraji tem apoio da Open Society Foundations.

Devido ao aumento de casos, uma campanha conjunta da Abraji e do Congresso em Foco colocou no ar o site Bolos Antiblock, que detecta mediante registro se o cidadão foi bloqueado por uma autoridade. Caso sim, a plataforma gera uma arte com base em criptografia inspirada nas receitas de bolo publicadas por jornalistas à época da ditadura no lugar de matérias censuradas pelo regime. Até o dia 05.jul.2021, a ação havia gerado 390 cryptoartes, além de ter sido premiada com o Leão de Bronze em Cannes.

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Abraji

Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Criada em 2002 por um grupo de jornalistas brasileiros interessados em trocar experiências, informações e dicas sobre reportagem, principalmente sobre reportagens investigativas. É mantida pelos próprios jornalistas e não tem fins lucrativos.

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