Estudo aponta “diferença crucial” entre o modelo de assinaturas e o modelo de associação. “Assinantes dão seu dinheiro e obtêm acesso a um produto. Mas membros se unem à causa e participam porque acreditam nela”
Por Carolina de Assis. Texto publicado originalmente no site do Knight Center for Journalism in the Americas
A crise de sustentabilidade do jornalismo tem originado alternativas de receita baseadas na relação entre os meios e seus leitores. Eventos e cursos presenciais são alguns exemplos, assim como o modelo de associação, ou membership, cada vez mais uma aposta de meios na América Latina para engajar seus leitores no fortalecimento do jornalismo que produzem.
O relatório “Clubes de membros no setor de notícias e além: o que a mídia pode aprender de outros movimentos movidos por apoiadores”, recém-lançado pelo Membership Puzzle Project e pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, sublinha uma “diferença crucial” entre o modelo de assinaturas e o modelo de associação. “Assinantes dão seu dinheiro e obtêm acesso a um produto. Mas membros se unem à causa e participam porque acreditam nela.”
Ao se associar a um meio jornalístico, os leitores se transformam em membros de uma comunidade apoiadora do trabalho realizado por aquele veículo. Em troca de sua contribuição financeira, os membros podem ter voz em decisões editoriais e acesso a canais exclusivos de comunicação com a equipe jornalística, assim como descontos junto a parceiros da publicação.
Assim funciona o programa de Aliados da Agência Pública, recém-lançado pela agência brasileira de jornalismo investigativo com base em suas experiências anteriores de financiamento coletivo e nas de meios financiados por apoiadores como o espanhol el.diario.es e o holandês De Correspondent.
Leitores se transformam em membros de uma comunidade apoiadora do trabalho
“Essa ligação do público [apoiador] com o veículo é mais forte do que simplesmente a doação. É ter participação, é ter gente disposta a defender a Pública em um momento de polarização política. É uma proposta de engajamento mesmo, de aumentar nossa produção com o apoio dos leitores”, disse Marina Amaral, codiretora da Pública, ao Centro Knight.
A Pública já contou com o apoio dos leitores nas três edições de seu projeto de financiamento coletivo “Reportagem Pública”, em 2013, 2015 e 2017. Como parte do programa, os apoiadores escolheram as pautas que a agência transformaria em reportagens. Foram 34 reportagens financiadas com R$ 213 mil doados por 2.429 pessoas, segundo informou Caio Costa, editor de audiências da Pública, ao Centro Knight.
A ideia agora é que esse apoio seja recorrente e se torne uma parte fixa da receita da agência, cuja maior parcela é o financiamento de fundações privadas, conforme indica em seu site. Cada meta de arrecadação prevê o aumento progressivo da produção da Pública, com contratação de repórteres, produção de podcast e expansão do alcance global do conteúdo da agência, com investimento nas republicações em espanhol e inglês.
“A palavra-chave para as pessoas que vão nos apoiar ou que já nos apoiaram é confiança”, disse Costa. “São pessoas que confiam no nosso trabalho e realmente acreditam na importância do que fazemos”.
A Pública já contou com o apoio dos leitores nas três edições de seu projeto de financiamento coletivo “Reportagem Pública”
Ao se tornarem aliados da Pública, os leitores passam a receber uma newsletter exclusiva, ter acesso ao espaço de comentários no site da agência e podem votar em opções de nomes para a entrevista do mês no site. Também têm descontos em livros de editoras parceiras e contato direto com o editor de audiências da Pública, posto criado especialmente para atender aos membros da comunidade.
“O grande desafio é conseguir chegar a todo esse público que já conhece a Pública e confia em nós, mas também chegar à pessoa que conhece, mas pode ter um envolvimento maior conosco, e chegar a um novo público”, disse Costa.
Jornalista com experiência em marketing, ele passou a integrar a equipe da Pública no fim de 2018 para se dedicar a este programa de membership e será a ponte entre os apoiadores e a equipe editorial da agência, disse Amaral.
“Não é algo formal, em que ele vai ter um voto ou a equipe vai escolher uma pauta que ele trouxer, mas certamente ele vai trazer o que vem recebendo dos leitores. Se os leitores acharem, em um exemplo hipotético, que a gente está produzindo mais, mas as nossas matérias estão mais superficiais, é um feedback importante. Ou se tem algum tema que a imprensa não está abordando e a gente também não abordou ainda, ele pode trazer isso”, disse a diretora da Pública.
Chegar a depender exclusivamente das contribuições financeiras de apoiadores, para Amaral, “é o Eldorado”. “Se você olhar nossa receita e ver a porcentagem que isso significa, ainda estamos muito longe disso”, observa. Em 2017, ano da última edição da Reportagem Pública, o financiamento coletivo correspondeu a 3% da receita da agência. “Em termos de pensar a Pública em um futuro de dez anos, esperamos que isso possa ser uma fórmula.”
SúperAmigos ao resgate!
O site La Silla Vacía, que se dedica especialmente à cobertura da política colombiana, aposta nessa fórmula desde 2012, quando lançou seu programa de associação SúperAmigos. Desde então, 4.784 pessoas já apoiaram e o site arrecadou 592 milhões de pesos colombianos (cerca de R$ 700 mil).
O programa é recorrente e aberto para associação durante o ano todo, mas realiza campanhas ao fim de cada ano. Em 2018, o programa superou pela primeira vez em um único ano a marca dos 1.000 SúperAmigos, segundo contou Pablo Isaza, coordenador comercial de La Silla Vacía, ao Centro Knight. De acordo com ele, hoje são 1.298 SúperAmigos ativos, ou seja, pessoas que contribuíram desde a última campanha.
“Tem sido um sucesso muito grande nos concentrar em uma campanha que seja temporal, porque gera urgência em nossos leitores, que pensam ‘tenho que contribuir, logo vai acabar o tempo’. Mas se por alguma razão a pessoa não pode contribuir durante a campanha, ela tem a opção de contribuir em qualquer dia do ano”, explicou Isaza.
Os SúperAmigos de La Silla Vacía têm seus comentários destacados no site, recebem uma newsletter exclusiva, têm descontos em lojas parceiras e podem participar das reuniões de pauta semanais na redação, que fica em Bogotá, capital da Colômbia.
SúperAmigos: programa é recorrente e aberto para associação durante o ano todo
“Os SúperAmigos têm esse benefício [de participar das reuniões de pauta] e podem nos enviar um email quando quiserem vir. Normalmente vem um a cada dois meses. É um benefício que usam muito pouco, mas que demonstra nossa transparência a todos”, disse Isaza.
Um grande desafio, segundo Isaza, tem sido se aproximar dos SúperAmigos de La Silla Vacía. “Não tem sido tão fácil, pois temos visto que as pessoas não são tão participativas, na realidade”, disse.
Os SúperAmigos também são os convidados exclusivos dos #ViernesEnLaSilla, entrevistas ao vivo realizadas toda sexta-feira na redação do site sobre um tema do momento e que são transmitidas pelas redes sociais de La Silla Vacía. No entanto, embora cerca de 500 SúperAmigos vivam em Bogotá e sejam convidados toda semana, “participam dois, três, cinco; no máximo oito” a cada evento, disse Isaza.
“Ainda assim, queremos continuar com os eventos [#ViernesEnLaSilla] porque são muito interessantes e nas transmissões ao vivo se conectam umas 80 ou 90 pessoas”, afirmou. “Digitalmente, são mais fortes, mas também queremos que os SúperAmigos saibam que as portas estão abertas e que podem vir à redação na sexta-feira quando lhes interesse e sem nenhum compromisso”.
Uma tentativa para manter um canal direto de comunicação com os apoiadores do site é o WhatsApp. Há pouco mais de um mês, os SúperAmigos passaram a receber um boletim em áudio pelo aplicativo de mensagens toda segunda-feira. Os boletins, que têm cerca de 1min30s de duração, são produzidos e enviados após a reunião de pauta e contêm os três principais temas da semana, determinados pelos jornalistas do site. No momento, são cerca de 300 SúperAmigos inscritos no serviço, disse Isaza.
Os SúperAmigos de La Silla Vacía têm seus comentários destacados no site
“A resposta em geral é de muito agradecimento. É como se eles não esperassem isso; eles nos dão seu dinheiro, mas não estão esperando necessariamente algo em retorno, então nos dizem ‘muitíssimo obrigado, continuem fazendo o trabalho que fazem’”, contou.
Assim como a Agência Pública, La Silla Vacía explicita em seu site as origens de seu financiamento, baseado em projetos comerciais e cooperação com fundações internacionais. Em 2018 os SúperAmigos foram responsáveis por 7% da receita do site. O objetivo é que essa cifra chegue a 14% em 2019 e 35% em dez anos, disse Isaza.
Nestes seis anos de programa, os SúperAmigos têm expressado que apoiam La Silla Vacía “por ser um meio independente, inovador, que está fazendo coisas diferentes na Colômbia”, disse o coordenador. Para ampliar o apoio ao site, portanto, manter a independência é uma das chaves, acredita ele. Assim como manter todo o conteúdo aberto a todos os leitores, sejam eles SúperAmigos ou não.
“Neste momento, os grandes meios, na Colômbia e ao redor do mundo, estão fechando seus conteúdo, impedindo que as pessoas acessem e naveguem várias histórias se não são assinantes. Nós aprendemos que grande parte do nosso sucesso é que seguimos sendo abertos e nossos conteúdos são para todos os usuários, independentemente de contribuírem ou não”, disse Isaza.
Um jornal que cresce pela comunidade
O uruguaio la diaria, por sua vez, traz o modelo de membros em seu DNA, como disse Lucas Silva, diretor e redator responsável pelo jornal, ao Centro Knight.
O jornal impresso nasceu em 2006 “pensado para assinaturas”, disse Silva, que também lidera a cooperativa de jornalistas responsável pelo meio. Mas se no primeiro momento o compromisso assumido com os assinantes foi a entrega do jornal todos os dias na porta de casa, nos últimos anos cresceram a importância das assinaturas digitais e a participação editorial das pessoas que sustentam la diaria, disse Silva.
Inclusive, embora o jornal siga usando o termo “assinaturas”, “conceitualmente avançamos para algo mais parecido a uma modalidade de associação”, afirmou. “Acredito que para o público ao qual chegamos no Uruguai ficou claro desde o princípio a que nos referimos com assinatura, mas de fato usamos muito o conceito ‘comunidade la diaria’, que em algum ponto se assimila melhor a certas características da associação.”
Segundo ele, hoje há 13 mil pessoas pagando por alguma das quatro modalidades de assinatura do jornal (entre o impresso, o digital e a revista Lento), o que representa 81% da receita da publicação. Eles fazem parte da comunidade la diaria, que se anuncia em sua página como “uma comunidade dinamizadora de conhecimento”.
Embora o jornal siga usando o termo “assinaturas”, “conceitualmente avançamos para algo mais parecido a uma modalidade de associação”
Além de descontos em serviços diversos como eventos do circuito cultural e cursos, inclusive universitários, os membros da comunidade são convidados a contribuir com seu conhecimento e sua expertise em projetos editoriais de la diaria.
“Saber quem são, onde vivem e ter a possibilidade de falar com eles é algo que orienta por onde ir encaminhando a proposta editorial. Fazemos consultas seguidamente com eles, lhes perguntamos sua opinião sobre o jornal, o que melhorariam, o que falta”, disse Silva.
Este diálogo ajuda o jornal a tomar decisões, afirmou. “Aprendemos que muitas vezes os leitores são muito diferentes dos jornalistas. Às vezes nós, jornalistas, pensamos que o leitor é como o colega que está do nosso lado na redação, e isso é complicado porque não é bem assim. A troca com a comunidade de leitores nos permite fazer conteúdos que de certa forma acabam sendo um serviço a essa comunidade. Não é que trabalhemos sob demanda, mas estamos atentos às necessidades deles. E isso é uma vantagem”.
Membros da comunidade são convidados a contribuir com seu conhecimento e sua expertise em projetos editoriais
Um exemplo, contou Silva, é a seção la diaria Salud, que também é uma newsletter. Diante dos dados de que muitos membros da comunidade la diaria eram médicos, a equipe do jornal convidou alguns deles para conversar sobre como elaborar uma seção especializada em saúde. Eles ajudaram a pensar a proposta editorial e deram sugestões sobre como o jornal deveria cobrir o tema.
“É possível tomar decisões editoriais a partir do conhecimento que a comunidade já tem. E é possível fazer isso sem trair nada de suas decisões originais. É óbvio que um cientista sabe mais sobre ciência do que um jornalista que se esforça muitíssimo para produzir conteúdo científico. Basicamente por isso apostamos na comunidade”, afirmou.
O jornal também está construindo, no andar debaixo de sua redação, em Montevidéu, um media lab, um laboratório de mídia que tem como uma de suas finalidades ser um espaço para “convidar muito mais a comunidade de leitores, para ver as caras deles, para além de outras trocas ou ferramentas de conversa digital”, disse Silva. “Nas vezes em que fizemos conversas com assinantes que estão há muitos anos bancando este projeto, muitas vezes são muito críticos, e isso ajuda muitíssimo, ajuda a se repensar, como uma prática cotidiana”.
“É possível tomar decisões editoriais a partir do conhecimento que a comunidade já tem”
Com o objetivo de ser integralmente financiado por seus leitores, la diaria tem buscado incentivar que mais deles se unam à comunidade, e que os que já são membros se engajem para expandi-la. Uma campanha que estão prestes a lançar, disse Silva, vai pedir que os membros subsidiem assinaturas de la diaria a novos eleitores, pessoas que têm entre 18 e 22 anos e que vão votar pela primeira vez nas eleições gerais deste ano, programadas para outubro.
Para Silva, o modelo de associação, com o engajamento dos apoiadores na manutenção e no fortalecimento do meio jornalístico, é o único possível para la diaria. “Me parece muito difícil avançar a modelos de negócio que estão sustentados em que as pessoas te paguem sem se perguntar por que elas estão dispostas a pagar. Deveria ser uma combinação entre aquilo que queremos fazer e aquilo por que as pessoas estão dispostas a pagar. É você [jornalista] quem tem que sair do lugar em que você é o leitor possível. Os leitores possíveis são muito diferentes de você, geralmente”.
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